terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Releituras

Influenciado por motivos alheios, ando fazendo releituras de obras da literatura brasileira há algum tempo adormecidas. Antes, tinha o costume de ler um livro por vez, mas à medida que passam os anos, venho lendo aquilo que me dá vontade.

Semana passada, fui ver a cópia restaurada de São Bernardo, filme homônimo do clássico romance de Graciliano Ramos, fielmente transplantado para a grande tela. Fiquei com vontade de revisitar o livro. Eu tinha uma edição, de 1953, amarelada pelo tempo e me deliciei ao viajar novamente naquelas páginas, recuperando, pouco a pouco, as sensações que me imprimiram no espírito as primeiras descrições das fortes personalidades de Paulo Honório e Madalena, personagens intrinsicamentes marcados pela tragédia da incompreensão.

Deixarei a biografia de Mao Tsé Tung de lado, mais uma vez, para voltar a reler D. Casmurro. Estou sob o efeito da maravilhosa adaptação feita pela equipe de Luiz Fernando Carvalho do clássico machadiano, preservando a sua rica estrutura narrativa e agregando, lado a lado, elementos modernos e tradicionais.

Percebe-se a modernidade da obra machadiana. Considero, ao assistir a minissérie, a minha quarta-leitura da clássica rememorização de Bentinho Santiago daquilo que foi seu grande amor e tragédia, os olhos de ressaca capitulinos.

Obviamente que, nas leituras anteriores, embarquei na viagem de tentar descobrir, infrutifiramente, se Capitu traiu ou não Bentinho ou se tudo foi fruto de uma mente fantasiosa.

Porém, ao ver o primeiro capítulo, pude notar porque D. Casmurro é um clássico e, ao mesmo tempo, cativante. Clássico porque a questão da traição é incidental na obra: o principal, realmente, não são os desencontros e desafetos dos protagonistas. As luzes centrais iluminam a eterna ópera performatizada pelos dois principais personagens da humanidade, o homem e a mulher. D. Casmurro é um clássico porque Machado de Assis tenta analisar a essência das almas feminina e da masculina. Em mais uma tentativa de delinear o assombro que é a diferença entre esses seres concavos, convexos, distintos, complementares, que podem habitar corpos separados, um mesmo corpo, corpos transpassados, corpos trocados, corpos tresloucados.

E, ao mesmo tempo, D. Casmurro é cativante à medida que, nas palavras do protagonista, ao tentar atar "as duas pontas da vida", Machado relembra - para o público e talvez para si próprio - as delícias martirizantes da adolescência, talvez em sua versão mais madura em Capitu, pelo simples fato de ser mulher. Isso tornou-se evidente para mim, na série, nas cenas dos namoricos nos jardins entre os dois, embaladas ao som de Beirut: o que se contempla é o alumbramento (lembrando o grande Manuel Bandeira), a pura inocência da segunda década de vida de qualquer um de nós, quando a vida ao mesmo tempo se apresenta simples e complexa, impossível e fácil, ao mesmo tempo. E Machado instala a empatia em nós ao criar este idílio introdutório, remetendo a um tempo futuro, onde nem as mais loucas parafernálias tecnológicas conseguiram arrancar esse comportamento que ainda se manifesta na juventude, tanto em seus aspectos cômicos quanto, nos casos mais radicais, embalados pela tragédia.

Enfim, Graciliano e Machado, além de clássicos, têm como ponto em comum a experimentação ousada de uma nova proposta de linguagem para a sua época e, curiosamente nos dois romances aqui apresentados, uma coincidência temática: as suspeitas de traição movem o drama tanto de D. Casmurro quanto de S. Bernardo. Bentinho e Paulo Honório, apesar de apresentar características diversas, encontram-se no vale das almas dos homens perdidos que não sabem lidar com a sua masculinidade diante de uma explosão de segurança de suas parceiras. A diferença é que Machado nos poupou - e se poupou também - de ver Capitu se degenerar fisicamente e mentalmente, sorte que não ocorreu a Madalena. Sabemos da separação do casal da obra machadiana, mas evitou-se olhar, com os nossos olhos carnais ou mesmo imaginários, o triste fim daquela que ficou, para a posteridade, conhecida como o grande enigma da literatura brasileira.

Esse não foi o único caso de contato entre os dois autores. Há alguns anos, Roberto Pompeu de Toledo, colunista da Veja, apontava semelhanças no tratamento entre os cachorros dos dois autores, em Quincas Borba e em Vidas Secas. Neste ponto, me lembro que o colunista até brincou, dizendo que o "comunista e supostamente ateu" Graciliano ainda teve a misericórdia de levar Baleia a um céu dos cachorros, presenteando-a, na vida eterna, com todos os preás que lhes foram privados na terra. A Quincas Borba, nem isso lhe foi concedido.