segunda-feira, 31 de março de 2008

Des-pedaço

  1. As cantoras não deveriam beber água durante suas apresentações. Desconcentra a platéia... perde-se o tênue fio da meada que circunda o repertório e provoca emoções no público... seja de uma tragédia desvairada... seja de alegria desmedida... seja numa representação de um personagem.

    Este mês tive a oportunidade de ir a diversos shows. Mas nenhum deles me tocou tanto quanto a apresentação de Nana Caymmi. Ela entrou inteira no palco. Com toda a sua tragédia cotidiana. Ouço-a agora. Sua voz cavernosa invadindo as reentrâncias do coração, pressionando as lágrimas, que escorrem sem parar, molham a minha camisa.

    Ela consegue despertar a minha solidariedade ou o meu lado sado-masoquista, que preza pelo sofrimento alheio ou próprio? Ao vê-la derramar as trágicas canções de Caymmi, intermiadas por lamentos sobre a barra de ver "papai" envelhecendo, entremeadas pelas cênicas brigas com os irmãos em palco, confesso que essa dúvida passou pelo meu corpo. Não sabia mais se a interação artista-público não passava mais de uma torrencial troca de energias, onde um, inadvertidamente, suga as emoções do outro.

    Ser artista não deve ser realmente fácil. Ter compromissos com o público enquanto o coração diz que não é por aí. Ter que deixar tudo para trás enquanto o temido palco te espera deve provocar um imenso pavor. Ouvir seus próprios caminhos, entremeados pelos caminhos da multidão que te escuta. Caminhos, muitas das vezes, desencontrados, não nos deixa alternativas senão olhar para dentro de nós mesmos, retirar das mais profundas trevas a nossa força.

    Aí se encontra a genialidade do verdadeiro artista. Essa conexão entre sua própria força, residente nas trevas, com as forças encontradas no alheio provoca a emoção do espetáculo. Quanto maior a entrega, maior a emoção. Nana estava lá! Inteira, completa, pesada, trágica... em sua voz, não havia a doçura do mel, o frescor da água. Sua garganta estava embebida de whisky, de rum, do trágico da vida... essa é a sua força! essa é, sem dúvida nenhuma a sua virtude! Ela estava despedaçada e com esta força despedaçou a todos... ao contrário da porcelana chinesa... o remendo será melhor que o original

terça-feira, 25 de março de 2008

vingança

Em algum ponto de sua juventude, não muito distante, deve ter sido uma negra bonita. Estonteante. Não como um ébano, ou como uma pérola negra. Essas imagens, há muito tempo, já devem ter tido a sua força. Mas, com o correr da ampulheta, perderam o seu viço. Tal como a negra.

Cantora de cabarés, muitas vezes trocava o encanto de sua voz marcante por tragos e tragos de gim. A vida a destroçara. Amores não correspondidos, homens brutos que não deram a devida importância ao seu resplendor. Tudo isso contribuiu para que, antes dos 40, já fosse um trapo de mulher.

Uma noite qualquer, ela se preparava para mais uma função. Cantar músicas tristes, débeis e belíssimas, entreter um público sórdido, composto dos mais podres bandidos, com o seu ultrapassado corpo. O desejo, definitivamente, não tem parâmetros.

Porém, o destino - sempre ele - lhe reservara um presente quando ela viu a mulher loira entrando no bar. Seu perfume estonteante, combinado com o odor de gordura, cigarro e bebida impregnado na parede, provocou um leve enjôo nos presentes, mas, aos poucos, foi sendo absorvido. Como tudo naquele ambiente democrático, aliás.

O circo estava armado para a vingança: a mulher em questão, era casada com a grande paixão da cantora negra. Como em um duelo, ela se armou de seu poderoso-decadente canto, olhou para a pequena banda que a acompanhava e soltou as primeiras notas. Eram afinadas, porém insuficientes. Já não havia força em suas cordas vocais que pudesse sustentar enormes agudos. Graças a Deus, o microfone já havia sido inventado. Ele ajudou para que, insistentemente, insistente, como em uma corrida de obstáculos, a negra prosseguisse rumo ao seu alvo, a destruição final. Firme. Desafiadora. Cabeça desdentada erguida.

Às vezes, ela olhava de soslaio o comportamento da loira. Que deleite! Uma mulher da high society, acostumada a finas iguarias, estava lá, prostrada, empaturrando-se de rum barato, lançando carentes e não-correspondidos olhares aos primeiros maltrapilhos que a olham. Como as genis, eles preferiam amar com os bichos. Como uma Gilda abusada sexualmente, ela tentava encontrar o seu centro, em vão.

A música prosseguia. A negra, buscando os últimos ares dentro de si, lança agudos ameaçadores. Tal como a Ofélia prostrada diante de sua loucura, ela não cede. Prossegue, lenta, inexorável até o final. É como um rio que busca encontrar o seu desagüe, seja no mar, em outro rio, no tudo ou no nada.

Até que veio o golpe de misericórdia. A conclusão. O grand finale. Numa só tacada, a cantora solta a última frase. Que cai. Despenca de um abismo. Até a cabeça da desfalecida loira. Como um punhal, cravado em seu coração. Ela desfecha o seu martírio, a sua vingança numa simples constatação: "Sophisticated Lady, you cry!!!!"

P.S. O texto homenageia uma das maiores cantoras do mundo, Billie Holiday. Desgraçada, assassinada pela vida e pelo seu cruel destino, ela ainda costuma atormentar a todos nós, que contribuímos para a sua dor simplesmente pela nossa existência. A música, no caso, é Sophisticated Lady. Depois que você a ouve, não é mais o mesmo. Desde o primeiro dia, imaginei um vídeoclipe, com alguma atriz simulando Billie e, com olhar devastador, dublando a canção em uma pocilga.
A referência à Ofélia vêm de artigo que o historiador britânico Eric Hobsbawn escreveu por ocasião de sua morte e que consta no livro "Pessoas Extraordinárias". Abaixo, segue a letra da música. Este blog adverte: Billie Holiday não é recomendável para pessoas com tendências suicidas ou maníaco depressivas.


Sophisticated Lady

Duke Ellington / Mitchell Parish / Irving Mills

They say into your early life romance came
And this heart of yours burned a flame
A flame that flickered one day and died away
Then, with disilution deep in your eyes
You learned that fools in love soon grow wise
The years have changed you, somehowI see you now
Smoking, drinking, never thinking of tomorrow,
nonchalant
Diamonds shining, dancing, dining with some man in a
restaurant
Is that all you really want?
No, sophisticated lady,I know,
you miss the love you lost long ago
And when nobody is nigh you cry

segunda-feira, 24 de março de 2008

Conclamação

Jurei a mim mesmo que este blog não se prestaria a campanhas de nenhuma espécie, mas a postura da China em relação ao conflito do Tibete me leva a conclamar a todos o devido boicote aos Jogos Olímpicos deste ano. Infelizmente contribuições individuais não ajudarão a derrubar o grande Golias da tirania absoluta, mas quem sabe, se cada faz a tua parte, a gente não rouba alguns dólarezinhos investidos nesta máquina de ganhar dinheiro... e de massacrar gente!

Haja trevas!

De repente, o espaço era sem forma... e aparentemente completo! Havia muita luz, uma luz incadescente, que causava cegueira nas criaturas!

Eis que irrompe Deus e grita: "Haja Trevas"! E trevas se fizeram! Desta forma completou-se a mágica da vida, do olhar... sem trevas, não há como se definir a luz. E vice-versa.

Foi neste instante que Paulo parou. E vislumbrou a mágica do amor. No instante segundo em que a instantânea penumbra de um lusco-fusco ininterrupto dava lugar a um ordem de coisas mais definida, Paulo pôde ver - explicitamente visto - o desenlance de laços que se agarravam no meio da pista cheia. No meio de gente fervida, de gente igual, de gente procurando seus próprios rastros de auto-estima, em vão, no seu outro, Paulo pode ver que faísca saiu do encontro de dois olhares.

Foi num piscar de olhos, mas foi eterno. Foi pra sempre. Naquela eternidade já descrita por Vinicius, que pode durar por toda a vida, por toda a intensidade, mesmo que seja por um mísero segundo... mesmo que não prossiga no nosso tempo carnal.

sexta-feira, 21 de março de 2008

post silencioso

Um comercial de uma operadora de celular traz, como fundo musical, "It´s a kind of magic", do Queen. Música vibrante, que chega para anunciar uma nova era, onde a comunicação poderá acompanhar o ser humano, onde quer que ele ande, por onde ele vá...

Sempre houve a promessa de que a tecnologia nos traria o conforto e a felicidade. Porém, o ser humano consegue ser surpreendente e a resposta foi a insatisfação. Nunca, mas nunca estamos contentes com o que temos. E, ao contrário, o efeito colateral de tanta parafernália foi a abertura de milhões de mundos ao alcance de nossas mãos, de nossos ouvidos, de nossos corações, tudo chegando de forma descompactada.

Falta silêncio na terra. Silêncio para escutarmos as batidas dos nossos corações... as vozes interiores. Elas nos guiam pelos caminhos da sensibilidade, da sensatez, que nos conduzem à felicidade e à resignação. Resignar-se, às vezes, faz parte da vida.

terça-feira, 11 de março de 2008

a beira do caminho

Uma linda priscesinha vinha andando pelo caminho... distraída, pensando no que encontraria no final da estrada de tijolos amarelos... tal como uma dorothy cor de jambo, será que ela voltaria para o seu querido Kansas ou qualquer outra rincão do Brasil que pudesse chamar de lar? Ou, no fim do caminho, encontraria um enorme pote, onde o ouro fosse a representação mais pura da realidade?

Ah, mas como é ingênua a nossa priscezinha... wondering (observação: sempre achei que "wonder" é, para a língua inglesa, o que "saudade" é para o Brasil... palavra que os estrangeiros adoram citar, mas ninguém sabe senti-la) wondering, wondering o quê? O Fim? Simplesmente?

Mal ela sabe das belezas do caminho... de cada gota de suor, de cada mutação, de cada esforço que precisa ser saboreado. Ela é nova ainda... eu também! São poucos os que sabem apreciar as delicias do sofrer e da alegria da vida.

De repente, suas delicadas mãos precisam agir rápido, para não cair. O caminho se torna íngreme. Como em um sonho, a trajetória torna-se dura, rigorosa, o caminho fica em 90 graus... subida ríspida, que requer muita força. Seus braços são roídos pelo cimentos. O caminho fica mais extremo. Gotas de suor, doces como o mel, espargem em seu rosto, aos borbotões. Borboletas e passarinhos aproximam-se, delicadas, buscando não desperdiçar nada. Transformando todo aquele trabalho em açúcar para a adoçar a vida.

Quando acredita que não possuía mais forças a priscezinha estancou: no fim do caminho, uma grande luz, que quase lhe cegava. Aos poucos ela consegue delinear o que está do outro lado. Surpresa, perplexa, pela primeira vez ela vê. Ela vê algo antes inacreditável. Sim, como o infante do Pessoa, que vinha correndo sem mesmo saber o que era, descobre que, ela mesmo era, a priscezinha que dormia. deslumbramento. todas as paisagens do caminho passam como um filme. Por fim, a priscezinha cumpriu o seu dever. Seja com "z" ou com "s", ela finalmente se transformou em rainha. Uma bela e sábia abelha-rainha!

quarta-feira, 5 de março de 2008

Cristais

O copo pareceu que lhe escapou das mãos... Como se tivesse voando para encontrar o grande amor dos objetos: a gravidade. Seja o que for o que tivesse fazendo antes, não importam mais as sinapses que passeavam pelo crânio, o fato é que Luísa parou tudo para observar os cristais inertes, paralisados, mortos no chão...

Não sei porque se chama Luísa... talvez porque rima com brisa... brisa do mar ou dos desertos incadescentes. Vestia sempre um vestido leve, transparente, de uma transparência casta, castiça... castiça transparência... castiçal de virtudes. Não uma transparência exibicionista, mas uma transparência que esconde um corpo frágil, de pernas brancas, finas, delgadas. E um tronco que mal conseguia se sustentar.

Seja o que for que estivesse fazendo, não seria mais possível a Luísa continuar depois da queda. Foi imediato! O copo não conseguiu ultrapassar o chão. Deixou de ser copo: passou a ser cacos... cacos cristalinos. Destes copos modernos que, ao se romperem, não oferecem mais riscos de cortes. Copos Insípidos. Copos que não desafiam mais os corpos a sentirem dor. Corpos inúteis.

A mente de Luísa viajava no material que compunha aqueles cristais. Quantos grãos de areia, às vezes irmãos, às vezes inimigos, foram comprensados até a exaustão, numa insana tentativa-demostração de que dois corpos, sim, podem ocupar o mesmo lugar no mesmo espaço ao mesmo tempo. Nem todas as leis são infalíveis!

Agora, os cristais separam-se. O vazio se impunha, seja para separar grãos de matéria com alguma coisa em comum, seja para agrupar, no mesmo exíguo espaço, imaterialidades que nunca vão dialogar. Pra quê? Por quê? Pensava Luísa... Por que o destino, a fatalidade fora tão cruel com aquele copo que, comprado a 5 reais na lojas americanas, era um exemplo de eternidade até um minuto atrás. Será que tinha que ser assim? Será que estava escrito? Se estava, porque ninguém fez nada para evitar...

O que Luísa não pensava, o que Luísa não aceitava, era a sua própria contribuição. Me recuso a escrever a palavra culpa, se bem que não paro de pensar nela: se não tivesse com as mãos ensaboadas e pensando como retribuir a traição de Eliseu, o pobre copo de requeijão não iria sofrer as consequências. Espere: era um copo de requeijão ou comprado nas lojas americanas? Nessa altura dos acontecimentoes, pouco importa.

terça-feira, 4 de março de 2008

Sobre mocinhos e vilões

Finalmente, algo interessante ocorreu na América Latina! Nos meus tempos de estudante de relações internacionais, lá pelos idos da década de 90, tudo parecia estar muito bem resolvido na região. Governos com orientações claramente liberais, com um forte alinhamento com a política externa norte-americana (quem não se lembra das "relaciones carnales" dos argentinos com os norte-americanos?), a questão social completamente encoberta pela necessidade de se cortar gastos públicos e uma crônica crise estrutural de credibilidade marcavam o cenário político e econômico da região

Ventos de mudanças, vindos principalmente da Venezuela, alteraram em parte este cenário. Continuamos pagando juros escorchantes, mas os dirigentes latino-americanos descobriram o discurso norte-americano como bandeira garantida para assegurar a popularidade junto ao eleitorado. E no caso de Hugo Chávez, esse discurso - para o bem ou para o mal - também garante uma certa ascendência no cenário internacional, com bons holofotes e muitas páginas na mídia internacional.

A crise diplomática instaurada entre Equador, Colômbia e Venezuela envolve variáveis muito mais ideológicas e políticas do que propriamente ligadas ao direito. A Colômbia, a meu ver, foi ingênua ao invadir o território equatoriano, em busca de guerrilheiros da Farc. Essa frase precisa ser compreendida dentro de todo o contexto geopolítico da região que, de um lado, contempla uma sistemática campanha antiamericanista protagonizada por Chavez, Correa e seus alinhados na região e, por outro, uma forte ingerência norte-americana na Colômbia, por conta do apoio norte-americano ao combate ao narcotráfico.

A questão é a seguinte: houve um atentado à soberania equatoriana pelo governo colombiano, evidentemente. Mas, ao negociar diretamente com as Farc, ignorando completamente a autoridade local, Hugo Chávez não cometeu uma afronta similar à autodeterminação do país vizinho? Um argumento que ambos podem alegar para se defender é que havia uma motivação humanitária (o que é muito justo. Vidas inocentes não podem pagar pela ação ou omissão de países), mas, na verdade, é que foram, igualmente, ingerências que foram completamente contrárias aos governos estabelecidos.

A questão é que uma invasão material é muito mais patentemente contrária à ordem internacional e aos costumes que uma negociação que apenas permaneceu no plano da ação diplomática - e que foi muito bem sucedida, por sinal. Porém, não deixam de ser, igualmente, violações, tanto da Venezuela quanto da Colômbia.

A impressão é a de que houve a construção de um xadrez geopolítico muito bem arquitetado. E a Colômbia foi a principal peça dessa movimentação. Vamos esperar as próximas jogadas. Mas duvido que haverá algum xeque-mate.

domingo, 2 de março de 2008

A viagem de Poe

O poeta havia sonhado! Ah, finalmente ele se abriu para imagens oníricas advindas do coração. Fazia tempo que o poeta não sonhava. Ele estava faminto por sonhos. Afinal, são eles que lhes trazem as imagens que completam a poesia.

O sonho do poeta era o seguinte: Edgar Allan Poe, pouco lido, mas muito comentado, era carregado em corpo por uma revoada de andorinhas. Em direção ao céu. Em direção ao sol. Seu corpo era carregado por tênus fios invisíveis. O poeta conseguia distinguir a revoada de passarinhos do corpo que se descarnava. Sim, foi dado ao poeta o poder de acompanhar todo o vôo e ele via o corpo de Poe desencarnar, aos poucos. À medida que ganhava altura, perdia peles músculos, carnes, fibras, tecidos... Somente ossos e - incrível - sua bem alinhada roupa e sua cartola permaneciam. Eram imunes ao calor. Eram imunes ao tempo. Eram eternos. Tais como as poesias e crônicas que saiam fervorosamente de suas mãos.

O poeta não sabia rimar. Achava que rimar dava muito trabalho. Pensar em palavras que possam se adequar ao ritmo e combinar com outras palavras era-lhe um absurdo contrasenso. Ia na contracorrente do pensamento. Exigia um imenso trabalho de burilação, que comprometia o sentimento, a comunicação.

O poeta queria a palavra pura, sem nenhuma interferência. Buscava o fluxo direto na fontes, sem que a pura água corresse para o leito do rio. Que ingenuidade. Por mais pura que fosse, essa água já vinha contaminada pelo pensamento, pela correta sintaxe, pela ordem exata. Pela necessidade do outro entender.

Mas quem liga para que o outro queira entender? O poeta, neste momento, quer se entender. Quer se compreender. Não está preocupado com orações coordenadas, subordinadas, exatas compreensões da sintaxe, da prosódia, da coerência e da coesão. O que importa é somente o fluxo do coração. Coração que, encravado nos ossos, ainda não desencarnou na grande viagem empreendida pelo cadáver de Poe ao infinito!