domingo, 2 de março de 2008

A viagem de Poe

O poeta havia sonhado! Ah, finalmente ele se abriu para imagens oníricas advindas do coração. Fazia tempo que o poeta não sonhava. Ele estava faminto por sonhos. Afinal, são eles que lhes trazem as imagens que completam a poesia.

O sonho do poeta era o seguinte: Edgar Allan Poe, pouco lido, mas muito comentado, era carregado em corpo por uma revoada de andorinhas. Em direção ao céu. Em direção ao sol. Seu corpo era carregado por tênus fios invisíveis. O poeta conseguia distinguir a revoada de passarinhos do corpo que se descarnava. Sim, foi dado ao poeta o poder de acompanhar todo o vôo e ele via o corpo de Poe desencarnar, aos poucos. À medida que ganhava altura, perdia peles músculos, carnes, fibras, tecidos... Somente ossos e - incrível - sua bem alinhada roupa e sua cartola permaneciam. Eram imunes ao calor. Eram imunes ao tempo. Eram eternos. Tais como as poesias e crônicas que saiam fervorosamente de suas mãos.

O poeta não sabia rimar. Achava que rimar dava muito trabalho. Pensar em palavras que possam se adequar ao ritmo e combinar com outras palavras era-lhe um absurdo contrasenso. Ia na contracorrente do pensamento. Exigia um imenso trabalho de burilação, que comprometia o sentimento, a comunicação.

O poeta queria a palavra pura, sem nenhuma interferência. Buscava o fluxo direto na fontes, sem que a pura água corresse para o leito do rio. Que ingenuidade. Por mais pura que fosse, essa água já vinha contaminada pelo pensamento, pela correta sintaxe, pela ordem exata. Pela necessidade do outro entender.

Mas quem liga para que o outro queira entender? O poeta, neste momento, quer se entender. Quer se compreender. Não está preocupado com orações coordenadas, subordinadas, exatas compreensões da sintaxe, da prosódia, da coerência e da coesão. O que importa é somente o fluxo do coração. Coração que, encravado nos ossos, ainda não desencarnou na grande viagem empreendida pelo cadáver de Poe ao infinito!

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