terça-feira, 25 de março de 2008

vingança

Em algum ponto de sua juventude, não muito distante, deve ter sido uma negra bonita. Estonteante. Não como um ébano, ou como uma pérola negra. Essas imagens, há muito tempo, já devem ter tido a sua força. Mas, com o correr da ampulheta, perderam o seu viço. Tal como a negra.

Cantora de cabarés, muitas vezes trocava o encanto de sua voz marcante por tragos e tragos de gim. A vida a destroçara. Amores não correspondidos, homens brutos que não deram a devida importância ao seu resplendor. Tudo isso contribuiu para que, antes dos 40, já fosse um trapo de mulher.

Uma noite qualquer, ela se preparava para mais uma função. Cantar músicas tristes, débeis e belíssimas, entreter um público sórdido, composto dos mais podres bandidos, com o seu ultrapassado corpo. O desejo, definitivamente, não tem parâmetros.

Porém, o destino - sempre ele - lhe reservara um presente quando ela viu a mulher loira entrando no bar. Seu perfume estonteante, combinado com o odor de gordura, cigarro e bebida impregnado na parede, provocou um leve enjôo nos presentes, mas, aos poucos, foi sendo absorvido. Como tudo naquele ambiente democrático, aliás.

O circo estava armado para a vingança: a mulher em questão, era casada com a grande paixão da cantora negra. Como em um duelo, ela se armou de seu poderoso-decadente canto, olhou para a pequena banda que a acompanhava e soltou as primeiras notas. Eram afinadas, porém insuficientes. Já não havia força em suas cordas vocais que pudesse sustentar enormes agudos. Graças a Deus, o microfone já havia sido inventado. Ele ajudou para que, insistentemente, insistente, como em uma corrida de obstáculos, a negra prosseguisse rumo ao seu alvo, a destruição final. Firme. Desafiadora. Cabeça desdentada erguida.

Às vezes, ela olhava de soslaio o comportamento da loira. Que deleite! Uma mulher da high society, acostumada a finas iguarias, estava lá, prostrada, empaturrando-se de rum barato, lançando carentes e não-correspondidos olhares aos primeiros maltrapilhos que a olham. Como as genis, eles preferiam amar com os bichos. Como uma Gilda abusada sexualmente, ela tentava encontrar o seu centro, em vão.

A música prosseguia. A negra, buscando os últimos ares dentro de si, lança agudos ameaçadores. Tal como a Ofélia prostrada diante de sua loucura, ela não cede. Prossegue, lenta, inexorável até o final. É como um rio que busca encontrar o seu desagüe, seja no mar, em outro rio, no tudo ou no nada.

Até que veio o golpe de misericórdia. A conclusão. O grand finale. Numa só tacada, a cantora solta a última frase. Que cai. Despenca de um abismo. Até a cabeça da desfalecida loira. Como um punhal, cravado em seu coração. Ela desfecha o seu martírio, a sua vingança numa simples constatação: "Sophisticated Lady, you cry!!!!"

P.S. O texto homenageia uma das maiores cantoras do mundo, Billie Holiday. Desgraçada, assassinada pela vida e pelo seu cruel destino, ela ainda costuma atormentar a todos nós, que contribuímos para a sua dor simplesmente pela nossa existência. A música, no caso, é Sophisticated Lady. Depois que você a ouve, não é mais o mesmo. Desde o primeiro dia, imaginei um vídeoclipe, com alguma atriz simulando Billie e, com olhar devastador, dublando a canção em uma pocilga.
A referência à Ofélia vêm de artigo que o historiador britânico Eric Hobsbawn escreveu por ocasião de sua morte e que consta no livro "Pessoas Extraordinárias". Abaixo, segue a letra da música. Este blog adverte: Billie Holiday não é recomendável para pessoas com tendências suicidas ou maníaco depressivas.


Sophisticated Lady

Duke Ellington / Mitchell Parish / Irving Mills

They say into your early life romance came
And this heart of yours burned a flame
A flame that flickered one day and died away
Then, with disilution deep in your eyes
You learned that fools in love soon grow wise
The years have changed you, somehowI see you now
Smoking, drinking, never thinking of tomorrow,
nonchalant
Diamonds shining, dancing, dining with some man in a
restaurant
Is that all you really want?
No, sophisticated lady,I know,
you miss the love you lost long ago
And when nobody is nigh you cry

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