terça-feira, 11 de novembro de 2008

fé verbo intransitivo

Os grandes olhos azuis de Plácido estavam intranquilos naquela noite clara de domingo. Ele não possuía os mares não-pacíficos de Maysa. Talvez porque o desventurado não tenha tido um Manuel Bandeira como um admirador. Mas eles merecem a comparação.

Plácido estava com suas estruturas abaladas. Não podia crer em nada. O que aconteceria após a morte? Os bons vão para o céu e os maus para o inferno, como foi ensinado num catecismo tiquetaqueante... mas o que era a bondade ou a maldade? Muitas vezes, pegava-se questionando essas certezas absolutas em prol de imaginar se a ocasião, em qualquer caso, faria o ladrão.

Lembrou-se da definição bíblica de que a fé é o firme fundamento daquilo que não se vê. às vezes, em seus sonhos, Plácido se via fugindo, escapando de um inimigo invisível, sem sexo definido, não sabia se humano ou monstro, enquanto o chão azulejado desfazia-se sob seus pés rumo ao um infinito. A palavra infinito dá uma conotação de céu, de altura, mas este infinito seguia para a terra, para o Hades... Ou será que Plácido estava de cabeça pra baixo, como, aliás, se encontrava o seu mundo?

Plácido se lembrou da definição de fe e concluiu que, tal qual o amor, a fé é um verbo intransitivo. Seu complemento acaba-se em si mesmo. E deve ser assim. Se a fé exigesse qualquer objeto para se completar, seja direto ou indireto, trairia a sua essência. Deixaria de ser fé. Para ser o quê?

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Poeta? Poetinha

Sempre disseram que eu era um poeta. Porém, nunca me vi como um poeta. Para mim, poetas eram aqueles seres que trabalhavam sozinhos, buscando a imagem perfeita, a rima preciosa, a palavra burilada.

Não penso nos simbolistas, acusados de não descerem de suas torres de marfim para ouvir a voz do povo. Penso mesmo em Drummond. Em Vinicius. Em Bandeiras. Desses gênios que souberam transformar o burburinho popular em uma sinfonia de aliterações, ritmos, sons, sentimentos.

A voz que eu escuto é a interior. É a voz que me grita, que me desassossega, que me tira do meu lugar em busca de outro, mais alto que eu. Não sei arrumá-la. Apenas sei desconcertá-la, tirá-la daqui, pô-la acolá, colocando-a apenas na ordem e na lógica que me mandam, as quais - pobre servo - resta apenas obedecer.

Não há sons, não há rimas. Eu sou um poeta que não sei rimar. Eu apenas sei pulsar. Será que sou poeta?

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

poltrona de couro elétrica

A gripe não despossuía meu corpo. Havia três dias que uma sinfonia incômoda de tosses violentas, rouquidão e um constante arfar me tomava. Toda a minha angústia existencial saltava de meus poros... para onde?

para o ar, para o etéreo, para a energia quimérica do nada que em tudo se transforma. porém, meu pobre corpo já não suportava aquele peso. compromissos profissionais me exigiam pelo menos 50% de minha saúde e forma física, e, naquela momento, sentia que estava contando apenas com o mínimo para sobreviver...

Me dirigi ao hospital. Enfrentei a descrença de uma jovem médica, que relutava em aplicar uma medicação de emergência. Malditos planos de saúde que implementaram a miséria humana onde nossas corpos mais precisam de carinho... em busca de economizar uns trocados.

Fui valente, enfrentei a terrível guardiã da burra economia e ela me indicou meia hora de inalação e um breve composto de drogas intravenária. Me indicaram uma sala, com poltronas de couro marrom, onde restaria meu pobre corpo cansado... e humano! por este período, pude observar o microcosmo de um universo à minha frente...vigiado por uma outra dimensão, intermediada pela tela da televisão, onde o Palmeiras levava uma surra de uma equipe argentina qualquer....

Namorados fiéis acompanhando preocupados e serenos seus companheiros... uma filha zeloza, chamando a atenção da mãe octagenária para ficar quieta, até a ordem do médico, que a dispensou, com a ordem de tentar diminuir pelo menos em um os dois maços de cigarro que ainda tragava.

Puxo assunto, parabenizando pela resistência e coragem da velhinha. Descubro que um velho colega seu, Paulo Autran, já havia morrido por conta do vício. E isso, parece-me, lhe dá uma certa esperança traduzida em resistência à ordem médica? Desde os 50 ela será advertida dos riscos do cigarro e mesmo assim não desistiu? Sera essa a essência de amores tóxicos a quais sempre estamos submetidos?

Olho para os lados, tentando fugir mesmo, mesmo, daquela situação. Mas uma hora acabei desistindo e me entregando à minha insignificância. Parecia, com aquele aparelho no meu nariz, dominado por um cateter qualquer, feito numa linha de produção imparcial - e que nunca seria pra mim - que iria morrer.

Quanto mais oxigênio com rinossoro entrava nas minhas artérias, mais a minha lucidez me advertia: todos, todos nós, vamos morrer. Uma vida eterna nos espera, sejamos cristãos ou ateus. uns desejando a glória dos céus, outras trabalhando pela vida infernal e, os mais conformados, acreditando piamente no nada após a morte. Mas, o nada, o que haverá no pós-vida-nada?

Aquela poltrona de couro mas se assemelhava à uma cadeira elétrica. Mas era mais maldosa que uma: me matou em mais um pedaço. Mais um dia da minha vida, desperdiçado por uma doencinha qualquer, onde eu sucumbi. Eu sei, não sou Deus. Sou apenas um ser humano sujeito às interpéries de uma vida onde as tempestades e bonanças se revezam, para lhes conferir um sentido pela negação do signo oposto.

Porém, aquela poltrona, aquela poltrona queria me dizer mais. Eu só ouvia seus gemidos... inexprimíveis, inexplicáveis, incompreensíveis. ela vinha de um outro mundo, dentro de mim, que eu tentava negar, mas que existe, dói, cutuca, está lá, latente, esperando que eu baixe a guarda para invadir.

Caminhos insconscientes para que eu lembre, descubra, o que realmente aconteceu há meses atrás... quando fatos e eventos de que não quero lembrar ocorreram em mim, minha memória aparentemente apagou... tal qual uma marca de giz mais forte que uma lousa pudesse comportar. Por mais que o apagador tente, as marcas de uma vida estão lá. Algumas queremos que tivessem sido ilegíveis, por toda uma vida.

A poltrona de couro fez que algumas dessas marcas se tornassem visíveis. O que faço? perguntei eu, indefeso, sozinho, sem forças, para entender essa mensagem? O que ela significa? que eu preciso superar definitivamente o ocorrido e saltar de cabeça e sem temor para uma profunda piscina repleta da água respirável da felicidade desencanada? Ou essa voz quer me atemorizar ainda mais em relação à frágil linha que me divide entre a vida e a morte...

As vozes se confundem, se entreolham, crescem em espiral dentro do meu coração. Fecho os olhos... a sua luminosidade negra, interiorana, me segue. Não vejo corações, vermelhos dentro de mim. Tudo é um profundo torpor, uma negritude impalpável. Não sei o que há lá. não quero tocar lá. Tenho medo do choque. Quero voltar.

Não suporto isso, olho para o lado, volto ao mundo exterior. A velhinha já se foi com a devotada filha. Os namorados continuam lá. Um deles vai e volta à porta, olhando, preocupadamente, para o seu companheiro. Outros vizinhos apareceram, os antigos retornaram às suas casas, ou suas habitações.

Chamo o enfermeiro com o olhar, pergunto, sem palavras, se ainda faltava muito tempo para ter alta de minha breve, difícil e voluntária internacão. Mais dez minutos, me informa a a voz seca, porém carinhosa, repleta de um profissionalismo respeitoso, do guardião cujo tom de pele contrastava com a cor aparentemente pura do uniforme que usava. Ambos partilhavam do mesmo material, composto de cansaço e germes insistemente repelidos pelos procedimetnos profiláticos que constantemente adotava.

Finalmente, me livrei daquela morte instantânea e reversível. Livre do catéter e do aparelho inalador, meu corpo pôde, finalmente, se desvincilhar daquele energia potente, negativa e positiva ao mesmo tempo, que me prendeu por poucos minutos ao outro mundo que me trasportou aquela poltrona. Minutos que demoraram uma eternidade.