terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Releituras

Influenciado por motivos alheios, ando fazendo releituras de obras da literatura brasileira há algum tempo adormecidas. Antes, tinha o costume de ler um livro por vez, mas à medida que passam os anos, venho lendo aquilo que me dá vontade.

Semana passada, fui ver a cópia restaurada de São Bernardo, filme homônimo do clássico romance de Graciliano Ramos, fielmente transplantado para a grande tela. Fiquei com vontade de revisitar o livro. Eu tinha uma edição, de 1953, amarelada pelo tempo e me deliciei ao viajar novamente naquelas páginas, recuperando, pouco a pouco, as sensações que me imprimiram no espírito as primeiras descrições das fortes personalidades de Paulo Honório e Madalena, personagens intrinsicamentes marcados pela tragédia da incompreensão.

Deixarei a biografia de Mao Tsé Tung de lado, mais uma vez, para voltar a reler D. Casmurro. Estou sob o efeito da maravilhosa adaptação feita pela equipe de Luiz Fernando Carvalho do clássico machadiano, preservando a sua rica estrutura narrativa e agregando, lado a lado, elementos modernos e tradicionais.

Percebe-se a modernidade da obra machadiana. Considero, ao assistir a minissérie, a minha quarta-leitura da clássica rememorização de Bentinho Santiago daquilo que foi seu grande amor e tragédia, os olhos de ressaca capitulinos.

Obviamente que, nas leituras anteriores, embarquei na viagem de tentar descobrir, infrutifiramente, se Capitu traiu ou não Bentinho ou se tudo foi fruto de uma mente fantasiosa.

Porém, ao ver o primeiro capítulo, pude notar porque D. Casmurro é um clássico e, ao mesmo tempo, cativante. Clássico porque a questão da traição é incidental na obra: o principal, realmente, não são os desencontros e desafetos dos protagonistas. As luzes centrais iluminam a eterna ópera performatizada pelos dois principais personagens da humanidade, o homem e a mulher. D. Casmurro é um clássico porque Machado de Assis tenta analisar a essência das almas feminina e da masculina. Em mais uma tentativa de delinear o assombro que é a diferença entre esses seres concavos, convexos, distintos, complementares, que podem habitar corpos separados, um mesmo corpo, corpos transpassados, corpos trocados, corpos tresloucados.

E, ao mesmo tempo, D. Casmurro é cativante à medida que, nas palavras do protagonista, ao tentar atar "as duas pontas da vida", Machado relembra - para o público e talvez para si próprio - as delícias martirizantes da adolescência, talvez em sua versão mais madura em Capitu, pelo simples fato de ser mulher. Isso tornou-se evidente para mim, na série, nas cenas dos namoricos nos jardins entre os dois, embaladas ao som de Beirut: o que se contempla é o alumbramento (lembrando o grande Manuel Bandeira), a pura inocência da segunda década de vida de qualquer um de nós, quando a vida ao mesmo tempo se apresenta simples e complexa, impossível e fácil, ao mesmo tempo. E Machado instala a empatia em nós ao criar este idílio introdutório, remetendo a um tempo futuro, onde nem as mais loucas parafernálias tecnológicas conseguiram arrancar esse comportamento que ainda se manifesta na juventude, tanto em seus aspectos cômicos quanto, nos casos mais radicais, embalados pela tragédia.

Enfim, Graciliano e Machado, além de clássicos, têm como ponto em comum a experimentação ousada de uma nova proposta de linguagem para a sua época e, curiosamente nos dois romances aqui apresentados, uma coincidência temática: as suspeitas de traição movem o drama tanto de D. Casmurro quanto de S. Bernardo. Bentinho e Paulo Honório, apesar de apresentar características diversas, encontram-se no vale das almas dos homens perdidos que não sabem lidar com a sua masculinidade diante de uma explosão de segurança de suas parceiras. A diferença é que Machado nos poupou - e se poupou também - de ver Capitu se degenerar fisicamente e mentalmente, sorte que não ocorreu a Madalena. Sabemos da separação do casal da obra machadiana, mas evitou-se olhar, com os nossos olhos carnais ou mesmo imaginários, o triste fim daquela que ficou, para a posteridade, conhecida como o grande enigma da literatura brasileira.

Esse não foi o único caso de contato entre os dois autores. Há alguns anos, Roberto Pompeu de Toledo, colunista da Veja, apontava semelhanças no tratamento entre os cachorros dos dois autores, em Quincas Borba e em Vidas Secas. Neste ponto, me lembro que o colunista até brincou, dizendo que o "comunista e supostamente ateu" Graciliano ainda teve a misericórdia de levar Baleia a um céu dos cachorros, presenteando-a, na vida eterna, com todos os preás que lhes foram privados na terra. A Quincas Borba, nem isso lhe foi concedido.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

fé verbo intransitivo

Os grandes olhos azuis de Plácido estavam intranquilos naquela noite clara de domingo. Ele não possuía os mares não-pacíficos de Maysa. Talvez porque o desventurado não tenha tido um Manuel Bandeira como um admirador. Mas eles merecem a comparação.

Plácido estava com suas estruturas abaladas. Não podia crer em nada. O que aconteceria após a morte? Os bons vão para o céu e os maus para o inferno, como foi ensinado num catecismo tiquetaqueante... mas o que era a bondade ou a maldade? Muitas vezes, pegava-se questionando essas certezas absolutas em prol de imaginar se a ocasião, em qualquer caso, faria o ladrão.

Lembrou-se da definição bíblica de que a fé é o firme fundamento daquilo que não se vê. às vezes, em seus sonhos, Plácido se via fugindo, escapando de um inimigo invisível, sem sexo definido, não sabia se humano ou monstro, enquanto o chão azulejado desfazia-se sob seus pés rumo ao um infinito. A palavra infinito dá uma conotação de céu, de altura, mas este infinito seguia para a terra, para o Hades... Ou será que Plácido estava de cabeça pra baixo, como, aliás, se encontrava o seu mundo?

Plácido se lembrou da definição de fe e concluiu que, tal qual o amor, a fé é um verbo intransitivo. Seu complemento acaba-se em si mesmo. E deve ser assim. Se a fé exigesse qualquer objeto para se completar, seja direto ou indireto, trairia a sua essência. Deixaria de ser fé. Para ser o quê?

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Poeta? Poetinha

Sempre disseram que eu era um poeta. Porém, nunca me vi como um poeta. Para mim, poetas eram aqueles seres que trabalhavam sozinhos, buscando a imagem perfeita, a rima preciosa, a palavra burilada.

Não penso nos simbolistas, acusados de não descerem de suas torres de marfim para ouvir a voz do povo. Penso mesmo em Drummond. Em Vinicius. Em Bandeiras. Desses gênios que souberam transformar o burburinho popular em uma sinfonia de aliterações, ritmos, sons, sentimentos.

A voz que eu escuto é a interior. É a voz que me grita, que me desassossega, que me tira do meu lugar em busca de outro, mais alto que eu. Não sei arrumá-la. Apenas sei desconcertá-la, tirá-la daqui, pô-la acolá, colocando-a apenas na ordem e na lógica que me mandam, as quais - pobre servo - resta apenas obedecer.

Não há sons, não há rimas. Eu sou um poeta que não sei rimar. Eu apenas sei pulsar. Será que sou poeta?

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

poltrona de couro elétrica

A gripe não despossuía meu corpo. Havia três dias que uma sinfonia incômoda de tosses violentas, rouquidão e um constante arfar me tomava. Toda a minha angústia existencial saltava de meus poros... para onde?

para o ar, para o etéreo, para a energia quimérica do nada que em tudo se transforma. porém, meu pobre corpo já não suportava aquele peso. compromissos profissionais me exigiam pelo menos 50% de minha saúde e forma física, e, naquela momento, sentia que estava contando apenas com o mínimo para sobreviver...

Me dirigi ao hospital. Enfrentei a descrença de uma jovem médica, que relutava em aplicar uma medicação de emergência. Malditos planos de saúde que implementaram a miséria humana onde nossas corpos mais precisam de carinho... em busca de economizar uns trocados.

Fui valente, enfrentei a terrível guardiã da burra economia e ela me indicou meia hora de inalação e um breve composto de drogas intravenária. Me indicaram uma sala, com poltronas de couro marrom, onde restaria meu pobre corpo cansado... e humano! por este período, pude observar o microcosmo de um universo à minha frente...vigiado por uma outra dimensão, intermediada pela tela da televisão, onde o Palmeiras levava uma surra de uma equipe argentina qualquer....

Namorados fiéis acompanhando preocupados e serenos seus companheiros... uma filha zeloza, chamando a atenção da mãe octagenária para ficar quieta, até a ordem do médico, que a dispensou, com a ordem de tentar diminuir pelo menos em um os dois maços de cigarro que ainda tragava.

Puxo assunto, parabenizando pela resistência e coragem da velhinha. Descubro que um velho colega seu, Paulo Autran, já havia morrido por conta do vício. E isso, parece-me, lhe dá uma certa esperança traduzida em resistência à ordem médica? Desde os 50 ela será advertida dos riscos do cigarro e mesmo assim não desistiu? Sera essa a essência de amores tóxicos a quais sempre estamos submetidos?

Olho para os lados, tentando fugir mesmo, mesmo, daquela situação. Mas uma hora acabei desistindo e me entregando à minha insignificância. Parecia, com aquele aparelho no meu nariz, dominado por um cateter qualquer, feito numa linha de produção imparcial - e que nunca seria pra mim - que iria morrer.

Quanto mais oxigênio com rinossoro entrava nas minhas artérias, mais a minha lucidez me advertia: todos, todos nós, vamos morrer. Uma vida eterna nos espera, sejamos cristãos ou ateus. uns desejando a glória dos céus, outras trabalhando pela vida infernal e, os mais conformados, acreditando piamente no nada após a morte. Mas, o nada, o que haverá no pós-vida-nada?

Aquela poltrona de couro mas se assemelhava à uma cadeira elétrica. Mas era mais maldosa que uma: me matou em mais um pedaço. Mais um dia da minha vida, desperdiçado por uma doencinha qualquer, onde eu sucumbi. Eu sei, não sou Deus. Sou apenas um ser humano sujeito às interpéries de uma vida onde as tempestades e bonanças se revezam, para lhes conferir um sentido pela negação do signo oposto.

Porém, aquela poltrona, aquela poltrona queria me dizer mais. Eu só ouvia seus gemidos... inexprimíveis, inexplicáveis, incompreensíveis. ela vinha de um outro mundo, dentro de mim, que eu tentava negar, mas que existe, dói, cutuca, está lá, latente, esperando que eu baixe a guarda para invadir.

Caminhos insconscientes para que eu lembre, descubra, o que realmente aconteceu há meses atrás... quando fatos e eventos de que não quero lembrar ocorreram em mim, minha memória aparentemente apagou... tal qual uma marca de giz mais forte que uma lousa pudesse comportar. Por mais que o apagador tente, as marcas de uma vida estão lá. Algumas queremos que tivessem sido ilegíveis, por toda uma vida.

A poltrona de couro fez que algumas dessas marcas se tornassem visíveis. O que faço? perguntei eu, indefeso, sozinho, sem forças, para entender essa mensagem? O que ela significa? que eu preciso superar definitivamente o ocorrido e saltar de cabeça e sem temor para uma profunda piscina repleta da água respirável da felicidade desencanada? Ou essa voz quer me atemorizar ainda mais em relação à frágil linha que me divide entre a vida e a morte...

As vozes se confundem, se entreolham, crescem em espiral dentro do meu coração. Fecho os olhos... a sua luminosidade negra, interiorana, me segue. Não vejo corações, vermelhos dentro de mim. Tudo é um profundo torpor, uma negritude impalpável. Não sei o que há lá. não quero tocar lá. Tenho medo do choque. Quero voltar.

Não suporto isso, olho para o lado, volto ao mundo exterior. A velhinha já se foi com a devotada filha. Os namorados continuam lá. Um deles vai e volta à porta, olhando, preocupadamente, para o seu companheiro. Outros vizinhos apareceram, os antigos retornaram às suas casas, ou suas habitações.

Chamo o enfermeiro com o olhar, pergunto, sem palavras, se ainda faltava muito tempo para ter alta de minha breve, difícil e voluntária internacão. Mais dez minutos, me informa a a voz seca, porém carinhosa, repleta de um profissionalismo respeitoso, do guardião cujo tom de pele contrastava com a cor aparentemente pura do uniforme que usava. Ambos partilhavam do mesmo material, composto de cansaço e germes insistemente repelidos pelos procedimetnos profiláticos que constantemente adotava.

Finalmente, me livrei daquela morte instantânea e reversível. Livre do catéter e do aparelho inalador, meu corpo pôde, finalmente, se desvincilhar daquele energia potente, negativa e positiva ao mesmo tempo, que me prendeu por poucos minutos ao outro mundo que me trasportou aquela poltrona. Minutos que demoraram uma eternidade.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Quem sabe eu escreva algo agora...

Esse título parece introdução à poesia de Bilac. "Ouvi estrelas, ora direis...", quem neste mundo concreto, frio e poluído, olha para os astros...

No máximo, no máximo... prestamos atenção nas estrelas confinadas no youtube, na TV, e muitas vezes não prestamos atenção às suas vozes, às suas mensagens, ao timbre afinado e desconcertante que quer nos transmitir, subliminarmente, uma emoção que a razão teima em escamotear.

Elas se contorcem, buscam compensar a baixa estatura com uma grandeza humana intangível, inalcancável. Saltam para perigosos penhascos, mergulhando na lava incadescente das paixões e voltam, majestosas, com o rosto reluzente à vida. Emergem dos palcos, olham, ressabiadas, como sempre, ao acompanhamento que lhes cercam. Buscam apoio em algo. Mas, sentem que estão sós. E neste momento fecham os olhos e, tais como as ísis do Egito, movimentam as suas bocas em busca de um vento incessante que, ao lado de beija-flores e libélulas, liberam a essência da vida para frutificar em outros corações por toda a eternidade.

Elis, não é por alguma data comemorativa de seu nascimento ou morte, mas este post é em tua homenagem. E por tudo que as suas canções me fizeram descobrir

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Palco

"Subo neste palco minha alma cheira talco, como bumbum de bebê..." o famoso verso do ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil, é invocado pelos artistas para demonstrar a adoração pelo palco, a necessidade de estar nele, de se mostrar, de mostrar o seu trabalho, etc. Talvez a maior demonstração desta reverância esteja no hábito de Maria Bethania - imitado por n-cantoras da nova geração - em cantar descalça, colocando a sola do pé em contato íntimo com a força da terra.

A minha relação com o palco e com os artistas passa por um leve masoquismo. Gosto dos cantores que sofrem no palco, que se desnudam, que colocam o sentimento e técnica à toda a prova, como se fosse a última coisa que farão em suas vidas. Elis era desta entrega. Biografias de Janis Joplin contam que ela se esgoelava daquele jeito por medo de o público descobrir que tudo aquilo era uma farsa.

Mas a questão é que é uma farsa. Assim como no teatro, os artistas sobem ao palco com suas máscaras e o próprio ato de se desnudar é uma exibição. Porém, quanto maior a capacidade de se aproximar da energia do público, de entrar em sintonia com as expectativas do ouvinte, maior o sucesso e os aplausos. Muitos não entendem, dizem que alguns cantores que fazem esta entrega são chatos. Acredito que não compreendem, nem um pouco, o extremado ato de coragem que é se expor.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Aos chicos de buena vontade

Procurar, buscar, inquirir, perseguir... não restam outros verbos aos homens de boa vontade, voluntariosos, curiosos, intrometidos, que esses. O que seria da vida dos grandes mestres se não houvesse a coragem de se aprofundar em mares onde nem os mais sábios dos deuses ousaram mergulhar?

Adão e Eva foram advertidos. A aventura da maça iria abrir um desejo insaciável pelo inesgotável. A curiosidade os colocou acima de Deus que, certamente, já havia sido Homem e já havia passado pelo processo. Ele sabia do que falava, ele já havia sofrido com o tormento da procura infinda.

Dercy Gonçalves morreu e abriu caminho para que a morte fizesse o seu importante trabalho. Sim, a morte é muito importante para o ser humano. A vida eterna não combina com a matéria. Queiramos ou não, a decrepitude bate à nossa porta todo o dia. Antecipa os vermes que, queiramos ou não mais uma vez, nos comerão, seja em mausoléus, seja cavados no triste anteparo marrom da terra.

Temor da morte ou do desconhecido-além? O que virá após esta passagem? Como garantir a vida eterna pós vida enferma? O que é o amor? Porque buscamos preencher este vazio sendo que temos tudo para não o sentirmos?

Que lástima, são exatamente essas perguntas que deveriam ser banidas de nossas vidas. O sofrimento seria menor? Que lástima, mais uma pergunta! E são tão poucas as respostas...

terça-feira, 29 de julho de 2008

Portuñol Salvaje

São Paulo está recebendo uma comitiva extremamente importante de intelectuais e pensadores do movimento Portuñol Salvaje. Em termos muito rápidos e muitos simples, são amantes da literatura, da poesia e das artes da região que se reuniram para apoiar e formentar uma literatura completamente inclusiva, baseada, sobretudo nas três línguas oficiais do Mercosul: português, espanhol e guarani.

Segundo um de seus principais representantes, Douglas Diegues, o Portuñol Salvaje busca elencar os elementos simbólicos, orais e escritos das três línguas, na busca de um amálgama que possa refletir a união dos povos. Isso, claro, sem desmerecer a valiosa contribuição de todos os erros e acertos advindos das línguas de outros povos - como chineses, japoneses, coreanos e árabes - que vieram tentar a sorte em terras sud-americanas, por aqui ficaram, e trouxeram em suas malas muito mais que esperança. Trouxeram um caldo cultural extremamente forte.

O Portuñol Salvaje me levou a refletir quais seriam realmente as motivações que levam e que deveriam levar à integração dos povos. Os que lêem pelas cartilhas marxistas argumentam que a infra-estrutura - as variáveis econômicas e ligadas à sobrevivência - determinam os movimentos históricos e até mesmo o posicionamento das super-estruturas, todos os autras variáveis que vão além das necessidades básicas.

O que seria, vendo de outra ótica, se o não-básico determinasse a integração entre os homens? Haveria tanta dominação, a subordinação dos mais fracos ao comando dos mais fortes ou maiores imperaria? Se houvesse uma integração lingüística, cultural primeiro, haveria necessidade de se impor um ou mais que uma língua oficial?

O Portuñol Salvaje prescinde de gramátikas. Não ker impor regras. Aceitará todas as contribuições que vierem. Abarcará todos os modismos. Virá, como uma onda impetuosa de um rio voluptuoso, carregando a terra das margens das florestas. Para criar o novo, a ilha, que despontará do meio do rio e abrirá as fendas da terra para abrigar as sementes. As sementes que germinarão e acabarão dando em frutos de tolerância.

Pode ser uma utopia. Que seja. Mas é uma utopia que independe guerras para vingar.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

A mágica da feira

Feiras livres devem existir em todas as cidades do mundo, mas duvido que qualquer uma delas reúna os elementos que tornam uma compra a uma feira de São Paulo um acontecimento mágico. Depois de muitos anos, eu fui com um amigo a uma feira livre. Iria acompanhá-lo apenas, mas acabei não resistindo e comprei algumas coisinhas que precisava para casa.

Pra começar, aquela enorme recepção com o pastel da família japonesa a postos. Pode dizer o que for: que faz mal, que está repleto de gordura saturada, que é frito num óleo que já serviu para coisas que até Deus e o Diabo duvidam, mas o fato é que não existe algo mais saboroso, mais divino que um pastel. E se tem que enfiar o pé na jaca, que seja um feito bem especial: com carne moída, ovo cozido, queijo, presunto e azeitona.

Pronto, já existe um forte motivo para você concluir a feira. É obvio que o sabor do pastel ficará mais ressaltado depois das compras, tal como um acorde que arremata o término de uma bela sinfonia. Partamos para as barracas de frutas, legumes, verduras, onde, apesar de predominante, o verde faz uma combinação elegante e simbólica com o vermelho do tomate, o alaranjado das cenouras e cítricos e mesmo os apimentados vermelhos e os abeterrabados roxos. Depois do olfato, agraciado com o suave e forte cheiro do pastel, é o olhar que agradece o descanso oferecido pelos produtos expostos.

E os ouvidos? Ah, os ouvidos são contemplados pelos gritos, pelas formas encontradas pelos feirantes, em sua simplicidade de expressão em conquistar a dificil atenção das clientes, fazendo contas subterrâneas ou atacando verozmente suas calculadoras em busca das melhores condições. "Moça bonita não paga, mas também não leva!", "São onze horas e ainda nada", "Madame vem experimentar a fruta, abacaxi docinho, docinho", essas expressões, onomatopéias gentilmente elaboradas, por si só, já dariam uma única crônica.

Na ala das carnes, peixes, frangos e afins, um espetáculo um pouco mais sombrio. É preciso um pouco mais de paciência para suportar o forte odor que exala de salmões, frangos, fígados, bovinos e frutos do mar expostos, escancarados em suas entranhas, prontos para se mancomunar com temperos e se transformar em manjares dos deuses, por meio da ação de boas mães ou de boas empregadas que prepararão pratos amorosos e saborosos.

E, por fim, a ala das quinquilharias. Tudo para o lar, aqui nós amolamos facas, consertamos peças de fogão, fazemos qualquer negócios. E toda a feira que se preze vendem aqueles carrinhos de borracha, fusquinhas feitos de plástico simples, mas que fazem qualquer garoto viajar. Ou aqueles sucos, coloridos artificialmente, embalados em plásticos transparentes, que fazem a alegria de qualquer garotinha despreocupada em sobreviver em um mundo onde os noticiários nos dão conta de todos os perigos que nos cercam.

Enfim, um passeio pelas feiras paulistanas pode ser uma inesgotável fonte de saciedade. Para os sentidos, para a alma, para o espírito. E, também para o corpo. Afinal, como eu disse, aquele pastel especial do japonês está à nossa espera. Junto com o caldo de cana. Que dispenso. Prefiro morder a cana com meus próprios dentes.

sábado, 19 de julho de 2008

À flor da pele!

"Veja com os dedos, se as pontas alongadas e insensíveis do coração de seus olhos não conseguem enxergar!", penetrava em mim esta ordem enquanto insistia em passar este creme hidratante pelo meu corpo. A densidade da loção exigia um esforço muito maior do que as minhas mãos costumavam fazer. Não era acostumado àquele toque bruto! Precisava alisar, apertar e esfregar em sucessivas camadas, em um esforço inútil para que a beleza prometida por aquele frasco penetrasse em mim.

A sensação era um deleite! A cada esfregada, sentia o creme misturado a uma essência intangível entrava de dentro de mim. Aos poucos, vai me dominando. Começa a atingir uma camada interior, uma derme abaixo da epiderme, impenetrável como uma cebola, mas com certas fendas parecidas com um queijo suíço. Essa mistura tornava-se um patê misterioso de um crescente auto-conhecimento.

Os toques, os pêlos, a pele, seus pequenos defeitos tudo isso - eureca! - era Eu. Um Eu até agora insuspeito, implorando para ser descoberto, buscando a real certeza de um tesouro guardado nas profudezas do mar vermelho de meu interior. A mistura do branco do creme à coloração sangüínea resultava em uma textura rosácea, cristalinamente rosácea, que lembra uma adolescência debutamente virginal. Sim, era um novo recomeço. E com um aurora dessas, é impossível sentir solidão.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Frio inconstante de julho

O frio pulsilânime que ataca as tardes de julho atinge a minha alma. Congela as minhas artérias. Me impede de pensar. Tudo o que meu cansado corpo almeja é se jogar em uma cama bem quentinha, depois de expor a pele suada à exaustiva rotina de vapor e gotas d´água escorrendo sobre os cabelos, sobre os pelos, sob a epiderme desprotegida.

Livros, música, alguma bobagem dita pelas celebridades dos novos instantâneos-tempos temperam esta rotina gostosa, aconchegante, pra dentro. Como numa viagem interior, não quero falar muito. "Você está muito introspectivo?" indagam os amigos, achando estranho esta nova atitude de um ser que se preza pelo falar desenganhado.

Quero que novas vozes sejam ouvidas dentro de mim. Preciso da constância de um carinho interno, de um calor que somente um momento de recolhimento pode proporcionar. A fogueira da auto-estima clama por mais lenha, precisa ser aninhada, protegida do vento cortante das opiniões alheias, do falar apenas pelo falar, do comparar-se sem nenhum tipo de aproveitamento. O coração - este órgão às vezes pequenininho, mirradinho - quer a proteção de um super-herói, de um verdadeiro homem que possa bancar os seus pulsos, de uma mulher que tenha o cuidado de contar as suas batidas rotineiras, de uma criança que, com o leve pincelar da inocência, preencha as suas lacunas com o vermelho da vida.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Cicatrizes internas

Um gosto amargo de muco sobe pela minha boca, vindo direto do meu intestino. O ventre pesa. Necessito colocar este peso para fora. Se não for pelos meios fisiológicos, que seja pelas lágrimas incompreensíveis de minhas palavras.

A sra. Inveja, esta dona tão aprumada, que entra em nossos corações calçando pantufas, suaves, coloridas, mais uma vez fez um estrago. Berrou aos altos cantos de meu ser barbaridades. Me expôs ao ridículo. Me disse que nunca - NUNCA - seria capaz. Capaz de qualquer coisa, capaz de amar, por exemplo.

Ela é a cortesã que cuida da antesala para a solidão. Pode ser que a sua companheira de cômodo não seja tão ruim, mas ela faz tudo para desestimular este encontro, que é inevitável. A solidão, se não nos ataca frontalmente, em nosso físico, nos apunhala em espírito, mesmo quando nos encontramos rodeados de uma multidão.

As pessoas não me olham... a voz da sra solidão faz reabrir cicatrizes internas, feridas antigas, que pensava eu já apagadas há muito tempo de meu ser. Essa reverbaração faz-se ouvir na troca de olhares. Meus olhos são bonitos, simples, claros. Porém, ninguém quer saber da minha clareza tão complexa. Sou como a esfingie da mitologia grega, mas sem palavras coordenadas para formular o meu enigma. A minha mensagem não chega no outro. Como posso querer uma aproximação se nem sequer chego a mim mesmo?

Os outros só escutam sons confusos. É necessário tempo para colocar as palavras na ordem exata. Ninguém quer perder tempo. Todos querem curtir. E a curtição prescinde da profundidade. São prazeres febris, que passam à medida em que o fogo da paixão se consome. E não é a sarça que nunca cessa. É a palha que se evapora em poucos segundos?

Por que será que quero tanto? A d. Inveja está aqui, batendo no meu coração, querendo que eu chore. Ela me pede uma resposta, me exige uma reação. Olho para o espelho. Sinto a terrível solidão que a minha imagem me passa. É terrivel olhar para você mesmo! O código que você transmite já confuso, fica duplamente tenso, quando duplicado. Agora é que não me entendo mesmo. O enigma não se formula. E ele é preciso.

Encaro as cicatrizes internas, olhando no espelho. Não, não preciso um tapa no visu. É inútil. É preciso que haja uma recauchutagem interior. E o meu Ivo Pitanguy sou eu mesmo

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Fartura

Roberto Carlos estava no tanque da minha casa, lavando o arroz que seria oferecido como néctar dos deuses a africanos famintos.

Misturavam-se os grãos, a carne e a manteiga. Com suas próprias mãos, amassava aquela massa, tornava-se a ir e vir a matéria insonsa que, após muito esforço e contando apenas com a fogueira do corpo, iria se transformar em pão. O pão da vida?

Apenas a água branco. Um branco branco, sujo de impurezas, mas limpo de coração, escorria. Rumo ao ralo. Uma água que deslizava para os interiores carregando tudo o que sobejava. Restava, naquela massa cozidia, a esperança da fartura. A saciedade do sustento.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Desamparo

Como diria o poeta, Luciano chorava lágrimas. De desalento, de desconsolo. Lembrava de uma cena recorrente, mas esquecida no subsolo de sua inconsciência. Ao ganhar o seu próprio quarto - sonho de qualquer menino - sombras o assustavam. Havia sempre o perigo iminente e irreal de ser agredido.

Agora - anos depois - ele voltava ao sentir tudo isso. Várias sensações em conjunto, ao final, não significavam absolutamente nada. Apenas confusão de sentimentos. Somente profusão de dissabores. Fechava os olhos físicos. Porém, as janelas da alma, teimosamente, insistiam em ficar abertas. Escancaradas. Vendo a vida interior passar. Procurando o velho sábio da praça para conversar. Sobre o quê? Era uma cena muda de um filme silencioso. E sem legendas. Sem ouvidos.

Seu imenso corpo curvava-se para um lado. Pendia-se para o outro. Buscando, em vão, o tênue equilíbrio em cima de uma corda bamba. Até que, sem querer, já desistindo de viver, rende-se a um sono profundo. Sono sem sonhos. Sono sem vida

quarta-feira, 7 de maio de 2008

A Valsa da Morte

Aquilo que não nos mata apenas serve para nos fortalecer. Machado de Assis teria dito que as mais lindas flores nascem dos mais fétidos extrumes. A verdade é que, na corda bamba que sustenta a tênue distância entre a vida e a morte, Ernesto estava se tornando um exímio malabarista. Com suas garrafas à mão, buscava, incessantemente, um equilíbrio tão inexistente quanto o amor idealizado.

Messias apenas ouvia uma valsa, que, em princípio, era composta de um ritmo mais devagar, acompanhando o andor. Esse ectoplasma de personagens, pessoas, emoções e experiências se ressente, neste momento, de não ter frequentado aulas de música clássica ou não ter às mãos um dicionário de música para exibir o seu falso palavriado de expressões latinas para descrever melhor o andamento da música. Resta dizer que, como toda a valsa, ela chega a um ápice, onde os bailarinos, trajados em suas vestimentas oitocentistas, buscam simplesmente acompanhar o andamento, sem sentir as vibrações do universo.

Terão se passado quantos dias, minutos, horas? Parecia que o tempo se imobilizou. Porém, na verdade, ele apenas prosseguiu. Incontinente. Pouco se importando para os fatos. Apenas o seu com-passar importa neste momento. Sentimentos, palavras, audácias, cheiros, tudo isto - que deveria ter ficado a cargo da memória para doces lembranças - se esfumou. Em que esfera, em que canto do corpo se abrigou todos estes fatos aniquilados por entorpercentes químicos? Só não
restou outra coisa senão o bailarino cair, fulminado, no palco, frente à uma platéia sádica, esperançosa, esperando o gran finale.

No chão, só de uma coisa esse bailarino tinha certeza: a volta é lenta, a recuperação é demorada e o público, cético. E tudo isso é necessário e precisa ser feito em segundos. Amigos e parentes são confiáveis, mas fora deste íntimo círculo, reina a crueldade, a maledicência e a própria incredulidade. Incredulidade a respeito de si mesmo, e de seu amor próprio. Essa ferida é a que mais dói.

A consciência demora a voltar: dois dias ineptos, onde um esforço físico é feito para se retomar as rédeas da vida. A memória tende a não obedecer, perguntas são repetidamente refeitas, para que haja uma certeza de que realmente tudo o que ocorreu, ocorreu. Mas para quê, meu Deus?

Será que no terceiro dia, Jesus sentiu a mesma fome do bailarino? Uma fome cruel, física e transcendental? Será que só saciará esta fome o mesmo pão da vida, que Jesus anunciou ser ele mesmo? Que ele deve ter deglutido para encontrar a força necessária para voltar dos mortos e trazer esperança. A tão esperada e mítica vitória sobre a morte. O pão representa a vida, a força que residia dentro dele mesmo e que ele compartilhava com os outros.

Negar compartilhar desse pão - que deveria espelhar fraternidade, compreensão, aceitação - transforma-o em um doce veneno que, amassado junto ao trigo, serve para confundir os fracos e segregar os fortes. Um veneno que se mistura e fermenta apenas desilusão e desilução.

O odor que impregna o palco não vem dos lírios dos campos ou das damas da noite - cenário cliché para um funeral. Tampouco é o cheiro da deglutição dos vermes na carnes ainda pulsantes. Não, a Valsa da Morte, executada desmecanicamente por um bailarino solitário dentro de um compartimento igual a tantos outros, é acompanhado por um vômito fétido e escuro. Reação química, no corpo, da mistura do veneno e da vida, encontrados no fazer do pão. Somente assim o joio segrega-se do trigo.

E a única esperança que nos resta, após a sobrevivência e ao tratamento, fecha-se em um ciclo: aquilo que não nos mata apenas serve para nos fortalecer.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Silêncio e luto

Assim como as velhas carpideiras, os silenciosos são mal quistos no mundo moderno. O que é uma pena... neste mundo onde milhões de vozes se interpenetram, muitas vezes é preciso um grande esforço para escutar o silêncio.

É na quietude que brota a voz da nossa alma. Uma vez verdadeira. Clara como cristal. Que diz exatamente o é. Essa voz não conhece o verbo parecer. Essa voz, não sabe o que é o sentir. Ela simplesmente é. E, por ser, cria um tsunami interno, uma força que nos leva além dos limites. Ilimita-se em nossa própria plenitude.

Por isso, assim como o luto é necessário para que a força renasça da morte, o silência precioso precisa instaurar-se. Será que, neste mundo barulhento em que vivemos, o ser humano teme ouvir a tua própria voz?

terça-feira, 22 de abril de 2008

O pesadelo de Cassandra

Os mitos estão lá. Todos. Aglutinam-se. Entrelaçam-se. Caim e Abel são inquiridos por um anjo malvado que, tal como a Abraão, pede um sacrifício de sangue para provar sua lealdade a Deus. O porém é que este anjo, tal como Janos, possui duas faces. E não revela a sua misericórdia e o amor de uma dimensão paralela, deixando-se perder a esperança de uma geração, de um povo.

Falo, em metáforas, do "Sonho de Cassandra", último lançamento do excelente diretor norte-americano Woody Allen, onde ele trata, mais uma vez, dos limites da ambição humana.

O enredo é simples: dois irmãos, de classe média baixa, enforcados até o pescoço em dívidas e ambição, aceitam a empreitada de um tio sempre generoso, que encomenda a morte de um executivo que pode colocá-lo na cadeia. Depois de muito hesitar, os dois irmãos executam o que pensam ser o crime perfeito.

É a partir daí que se inicia um jogo de espelhos que se torna muito, mas muito perigoso. O nosso Caim contemporâneo não traz as boas primícias aos pés do Senhor: ele as dissimula, em nome de uma ambição, de um futuro glamuroso, de um sonho que, finalmente, irá se concretizar. O que passou, passou, o importante é o agora. Pressionado pela ditadura da juventude, da pressão pelas histórias fantásticas e precoces de ambiciosos executivos que ajuntaram grandes fortunas ou de grandes topmodels que se consideram velhas já, aos 23 anos, esse Caim julga que já está no limite para seguir a sua própria jornada e ser feliz.

Mal ele contava que ficaria preso a uma honestidade intelectual, quase infantil, de um Abel, que ainda deposita o melhor do melhor de sua hortinha aos pés do Deus-Todo Poderoso. Um arremedo de loucura, corroborado pela culpa, pela bebida exarcebada e pelo aumento do consumo de remédios parece tomar conta desta própria criatura, que se predispõe a fazer justiça a qualquer preço e a diminuir o peso de sua consciência.

Sim, meus senhores, o circo de Woody Allen está mais uma vez armado. Tal como o Diabo de Goethe, que cobra caro - e com juros - os desejos oferecidos a seu jovem pupilo, a vida moderna vem cobrar uma posição dura de nossos títeres. O Caim clássico mata a Abel e se mata, ao atrair para si a ira divina. A nossa versão contemporânea dos irmãos Karamazóv não tem a mesma fortuna... eles não merecerão perdeu. Deixarão as infelizes Penélopes a esperar, tricotando inutelmente as suas mantas... Já que isso é uma mistura de arquétipos, deixo a liberdade fluir para lhes dar este final, trágico deslance. Tudo nos sonhos de Cassandra são confusão, coerentes e coesas ao mesmo tempo.

domingo, 13 de abril de 2008

Assombro

O azul do céu poente me assombra. Vejo, por meio dele, permeando, a amplidão...

Será a morte tal como esse azul que, por um pequeno lapso de tempo, não se decide entre a alegria matutina e a escuridão madrugal. É um azul limpo, sem estrelas, com nuvens invisíveis, espreitando, esperando o seu momento de liquifação... esperando a autorização para liberar as lagrimas. Como queria que a Clara Luz realmente existisse e, de vez em quando, colorisse as pequenas gotas, transformando um belo fim de tarde de domingo em esplendoroso carnaval.

É a minha alma que vai nesse azul. Sinto que ele me invade. Me transmite a paz necessária para uma semana que, já começou com o sentimento do dever cumprido.

As revoluções do Cotidiano

Em um documetário sobre a Tropicália e, mais especificamente, sobre o papel de Gal Costa no movimento, Tom Zé, teria dito que a censura não estava tão preocupada com as posições de direita ou esquerda dos artistas. Não consigo reproduzir bem as suas falas, mas só me lembro de que ele teria dito que, "o que incomodava o censor era que, na letra da Tropicália, chamava-se a atenção para a Margarina... a ditadura não sabia lutar contra a margarina, por isso se incomodava."

Tom Zé, antes de tudo, se porventura você ler isto, me perdoe pelas incorreções. O importante é a idéia principal. A tua geração lutou contra os modismos, contra as formas, contra o pré-estabelecido. E invocar o cotidiano, o amor plebeu, foi uma arma - e muito inteligente, por sinal - de marcar território.

Em recente documentário sobre a obra de Nara Leão, a rede Globo resgatou uma fala da cantora, que assumia publicamente a dificuldade de se cantar a obra de Roberto Carlos. "Ele falava sobre uma rotina muito íntima, que é muito difícil para mim, diante da minha timidez".

Dificil para qualquer um. A busca da completa desglamurarização do cotidiano é uma tarefa hercúlea. Espere! Para que isso? Por que é tão difícil, tão imenso, descrever um simples café-da-manha com pão e manteiga, e tornar isso arte!

Roberto Carlos, Chico Buarque, Dominguinhos conseguiram essa proeza. Buscaram no passo atrás do outro... na xicara de cafe suja... nos lençóis suadas... nos hálitos pré-primeira higiene bucal o suave perfume de uma inspiração. A transformação do esterco em rosa é o principal desafio de todo o artista. Por vezes, a matéria-prima não agrada. Mas o resultado é primoroso!

terça-feira, 8 de abril de 2008

sonho impossível

Sonhei que eu era a Carolina Dieckmann, grávida, querendo dar a luz, e não conseguindo

Justa carreira...

Ele corria... corria para o infinito... para o abismo de uma solidão insondável... não sabia qual era o prêmio se chegasse em primeiro... ah, se tivesse esperança de que houvesse algum prêmio! às vezes, ele gostaria de saber se haveria vida após a morte. Mas seria uma informação relevante? E, se por acaso, descobrisse que, após a morte, uma morte em vida - tal como essa - o esperasse. Momentos eternos de solidão seriam a tua eterna companheira, como um castigo - não um prêmio - por querer saber além de sua competência de humano.

Muitas vezes, ele agia como o Dick Vigarista, da Corrida Maluca. Como o ligeirinho, o Papa Léguas, ou a Lebre. Confiava demais em sua aparente velocidade, em estar sempre na vanguarda de tudo, em saber de tudo na frente dos outros para vir ensinar à posteriodade. Esquecia-se que a verdadeira sabedoria estava com a lebre ou com a lesma que, ao respeitar a tua própria velocidade, respeitavam-se, em tua essência.

Às vezes, se surpreendia pensando nesses atletas que diariamente quebram recordes. Sucessivamente. Ele, que era tão normal, se subjugava. Comparava-se a um malvado genérico que via no espelho, com uma barriga fora de lugar e sem aquela aprovação pelos cânones da beleza universal.

Pra quê tudo isso? Por que te abates, su´alma? Esqueceste, por um acaso, que vieste do pó e ao pó voltarias, ainda com desconto por espalhar a sua alma pela terra? Eram vozes e vozes tentando consolar uma vida inconsolável. Ao constatar, tristemente, de que ele poderia tudo nessa breve vita. Tudo, exceto deixar de ser Ele mesmo... quem sabe, perguntava-se, o segredo da felicidade se encontraria numa certa alienação desta pobre condição humana. Eis o prêmio dos justos. Da premiação de uma justa carreira. O simples e inequívoco fato de viver como eles mesmos.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Aforismos sem juízo

Gosto deste subtítulo da coluna do Daniel Piza... tomo-o emprestado hoje à noite. Espero que não me processem por direitos autorais

- Paul McCartney continua tão bom na carreira solo quanto na época dos Beatles. Parece que a sua genuinidade nunca o abandonou

- George Bush filho conseguiu revolucionar um costume dos norte-americanos. Derrubou por terra toda aquela reverência à figura do presidente. Pensava nisso quando via um chamado, no Canal Sony, de uma série ridicularizando o presidente... o que para nós é um saudável esporte nacional, para os Estados Unidos representava uma aura quase santa.

Me lembro há uns 3 anos que a Warner tentou emplacar uma série que mostrava dois irmãos que iriam ser futuros presidentes dos Estados Unidos em 2050, quando, potencialmente, a China assumiria a liderança mundial. O tratamento à figura da formação do presidente era bem diferente, dramática até. Pena que esta série não pegou. Ficou apenas 1 ano. Será que o Bush-Filho-Bart-Simpson permanece no ar?

- Maria Bethania continua uma diva... seu show com Omara Portuondo foi um primor, não obstante ela exagerar na reverância à sua hóspede e manter uma certa distância da vida real. O palco para ela parece uma brincadeira... lugar de exorcismo de seus fantasmas, mas um exorcismo light, dramatizado. Diferentemente de Nana, ela não carrega tudo para o palco. Não lhe interessa. Mesmo assim, não deixa de ser deslumbrante.

- o padrão globo de dramaturgia precisa de renovação. E urgente. Não consigo indicar um programa instigante. Mesmo "Queridos Amigos", que parecia ser mais tocante, no bom sentido, se desvirtuou para o pieguismo. Uma pena. Excelente trilha sonora desperdiçada!

terça-feira, 1 de abril de 2008

Coisas sem importância

Um amigo me perguntou porque não coloco fotos neste blog. Respondo que a palavra me comove. O verbo sempre me instigou. Quando criança, quanto mais páginas, quanto mais letras, quanto mais miúdas eram, maior era a minha curiosidade. Queria devastar a floresta de palavras que me circularam. Os fãs de Ziraldo que me perdoem, mas achava O Menino Maluquinho um engodo... "Onde estão as palavras?", dizia eu na sabedoria dos meus 7 anos

Entrei na escola já alfabetizado. Letras me eram familiares. Palavras eram como pequenos irmãozinhos, que eu ia descobrindo diariamente... eu era apaixonado pelo novo, pela curiosidade. Cada instante era uma nova descoberta. Como diria Clarice, o instante-já me encantava. Queria pegar o instante-já... uma pena que ele, como sabão derretido, escape sempre por entre os dedos.

Por isso são as palavras ao vento. Mesmo sem saber que Cassia Eller havia gravado música com este verso, acho que ele descreve perfeitamente este blog. Um esforço em vão de captar o instante-já em gráfico. Tal como uma fotografia... sim, explica-se o porque do não-uso de fotografias neste blog. Os fotógrafos captam o instante-já nas telas. Eu, como Clarice e outros escritores - pobres tolos e pretensiosos que somos - sonhamos em captar o instante-já em palavras, numa tentativa mais inútil de escrever à velocidade da luz. Sim, os sons vêm sempre depois, mas são tão eternos quanto uma fotografia. Não, não preciso de imagens neste blog. Meu amigo anônimo e leitor fiel, obrigado pela dica, mas fotos nesses blog seriam redundantes.

segunda-feira, 31 de março de 2008

Des-pedaço

  1. As cantoras não deveriam beber água durante suas apresentações. Desconcentra a platéia... perde-se o tênue fio da meada que circunda o repertório e provoca emoções no público... seja de uma tragédia desvairada... seja de alegria desmedida... seja numa representação de um personagem.

    Este mês tive a oportunidade de ir a diversos shows. Mas nenhum deles me tocou tanto quanto a apresentação de Nana Caymmi. Ela entrou inteira no palco. Com toda a sua tragédia cotidiana. Ouço-a agora. Sua voz cavernosa invadindo as reentrâncias do coração, pressionando as lágrimas, que escorrem sem parar, molham a minha camisa.

    Ela consegue despertar a minha solidariedade ou o meu lado sado-masoquista, que preza pelo sofrimento alheio ou próprio? Ao vê-la derramar as trágicas canções de Caymmi, intermiadas por lamentos sobre a barra de ver "papai" envelhecendo, entremeadas pelas cênicas brigas com os irmãos em palco, confesso que essa dúvida passou pelo meu corpo. Não sabia mais se a interação artista-público não passava mais de uma torrencial troca de energias, onde um, inadvertidamente, suga as emoções do outro.

    Ser artista não deve ser realmente fácil. Ter compromissos com o público enquanto o coração diz que não é por aí. Ter que deixar tudo para trás enquanto o temido palco te espera deve provocar um imenso pavor. Ouvir seus próprios caminhos, entremeados pelos caminhos da multidão que te escuta. Caminhos, muitas das vezes, desencontrados, não nos deixa alternativas senão olhar para dentro de nós mesmos, retirar das mais profundas trevas a nossa força.

    Aí se encontra a genialidade do verdadeiro artista. Essa conexão entre sua própria força, residente nas trevas, com as forças encontradas no alheio provoca a emoção do espetáculo. Quanto maior a entrega, maior a emoção. Nana estava lá! Inteira, completa, pesada, trágica... em sua voz, não havia a doçura do mel, o frescor da água. Sua garganta estava embebida de whisky, de rum, do trágico da vida... essa é a sua força! essa é, sem dúvida nenhuma a sua virtude! Ela estava despedaçada e com esta força despedaçou a todos... ao contrário da porcelana chinesa... o remendo será melhor que o original

terça-feira, 25 de março de 2008

vingança

Em algum ponto de sua juventude, não muito distante, deve ter sido uma negra bonita. Estonteante. Não como um ébano, ou como uma pérola negra. Essas imagens, há muito tempo, já devem ter tido a sua força. Mas, com o correr da ampulheta, perderam o seu viço. Tal como a negra.

Cantora de cabarés, muitas vezes trocava o encanto de sua voz marcante por tragos e tragos de gim. A vida a destroçara. Amores não correspondidos, homens brutos que não deram a devida importância ao seu resplendor. Tudo isso contribuiu para que, antes dos 40, já fosse um trapo de mulher.

Uma noite qualquer, ela se preparava para mais uma função. Cantar músicas tristes, débeis e belíssimas, entreter um público sórdido, composto dos mais podres bandidos, com o seu ultrapassado corpo. O desejo, definitivamente, não tem parâmetros.

Porém, o destino - sempre ele - lhe reservara um presente quando ela viu a mulher loira entrando no bar. Seu perfume estonteante, combinado com o odor de gordura, cigarro e bebida impregnado na parede, provocou um leve enjôo nos presentes, mas, aos poucos, foi sendo absorvido. Como tudo naquele ambiente democrático, aliás.

O circo estava armado para a vingança: a mulher em questão, era casada com a grande paixão da cantora negra. Como em um duelo, ela se armou de seu poderoso-decadente canto, olhou para a pequena banda que a acompanhava e soltou as primeiras notas. Eram afinadas, porém insuficientes. Já não havia força em suas cordas vocais que pudesse sustentar enormes agudos. Graças a Deus, o microfone já havia sido inventado. Ele ajudou para que, insistentemente, insistente, como em uma corrida de obstáculos, a negra prosseguisse rumo ao seu alvo, a destruição final. Firme. Desafiadora. Cabeça desdentada erguida.

Às vezes, ela olhava de soslaio o comportamento da loira. Que deleite! Uma mulher da high society, acostumada a finas iguarias, estava lá, prostrada, empaturrando-se de rum barato, lançando carentes e não-correspondidos olhares aos primeiros maltrapilhos que a olham. Como as genis, eles preferiam amar com os bichos. Como uma Gilda abusada sexualmente, ela tentava encontrar o seu centro, em vão.

A música prosseguia. A negra, buscando os últimos ares dentro de si, lança agudos ameaçadores. Tal como a Ofélia prostrada diante de sua loucura, ela não cede. Prossegue, lenta, inexorável até o final. É como um rio que busca encontrar o seu desagüe, seja no mar, em outro rio, no tudo ou no nada.

Até que veio o golpe de misericórdia. A conclusão. O grand finale. Numa só tacada, a cantora solta a última frase. Que cai. Despenca de um abismo. Até a cabeça da desfalecida loira. Como um punhal, cravado em seu coração. Ela desfecha o seu martírio, a sua vingança numa simples constatação: "Sophisticated Lady, you cry!!!!"

P.S. O texto homenageia uma das maiores cantoras do mundo, Billie Holiday. Desgraçada, assassinada pela vida e pelo seu cruel destino, ela ainda costuma atormentar a todos nós, que contribuímos para a sua dor simplesmente pela nossa existência. A música, no caso, é Sophisticated Lady. Depois que você a ouve, não é mais o mesmo. Desde o primeiro dia, imaginei um vídeoclipe, com alguma atriz simulando Billie e, com olhar devastador, dublando a canção em uma pocilga.
A referência à Ofélia vêm de artigo que o historiador britânico Eric Hobsbawn escreveu por ocasião de sua morte e que consta no livro "Pessoas Extraordinárias". Abaixo, segue a letra da música. Este blog adverte: Billie Holiday não é recomendável para pessoas com tendências suicidas ou maníaco depressivas.


Sophisticated Lady

Duke Ellington / Mitchell Parish / Irving Mills

They say into your early life romance came
And this heart of yours burned a flame
A flame that flickered one day and died away
Then, with disilution deep in your eyes
You learned that fools in love soon grow wise
The years have changed you, somehowI see you now
Smoking, drinking, never thinking of tomorrow,
nonchalant
Diamonds shining, dancing, dining with some man in a
restaurant
Is that all you really want?
No, sophisticated lady,I know,
you miss the love you lost long ago
And when nobody is nigh you cry

segunda-feira, 24 de março de 2008

Conclamação

Jurei a mim mesmo que este blog não se prestaria a campanhas de nenhuma espécie, mas a postura da China em relação ao conflito do Tibete me leva a conclamar a todos o devido boicote aos Jogos Olímpicos deste ano. Infelizmente contribuições individuais não ajudarão a derrubar o grande Golias da tirania absoluta, mas quem sabe, se cada faz a tua parte, a gente não rouba alguns dólarezinhos investidos nesta máquina de ganhar dinheiro... e de massacrar gente!

Haja trevas!

De repente, o espaço era sem forma... e aparentemente completo! Havia muita luz, uma luz incadescente, que causava cegueira nas criaturas!

Eis que irrompe Deus e grita: "Haja Trevas"! E trevas se fizeram! Desta forma completou-se a mágica da vida, do olhar... sem trevas, não há como se definir a luz. E vice-versa.

Foi neste instante que Paulo parou. E vislumbrou a mágica do amor. No instante segundo em que a instantânea penumbra de um lusco-fusco ininterrupto dava lugar a um ordem de coisas mais definida, Paulo pôde ver - explicitamente visto - o desenlance de laços que se agarravam no meio da pista cheia. No meio de gente fervida, de gente igual, de gente procurando seus próprios rastros de auto-estima, em vão, no seu outro, Paulo pode ver que faísca saiu do encontro de dois olhares.

Foi num piscar de olhos, mas foi eterno. Foi pra sempre. Naquela eternidade já descrita por Vinicius, que pode durar por toda a vida, por toda a intensidade, mesmo que seja por um mísero segundo... mesmo que não prossiga no nosso tempo carnal.

sexta-feira, 21 de março de 2008

post silencioso

Um comercial de uma operadora de celular traz, como fundo musical, "It´s a kind of magic", do Queen. Música vibrante, que chega para anunciar uma nova era, onde a comunicação poderá acompanhar o ser humano, onde quer que ele ande, por onde ele vá...

Sempre houve a promessa de que a tecnologia nos traria o conforto e a felicidade. Porém, o ser humano consegue ser surpreendente e a resposta foi a insatisfação. Nunca, mas nunca estamos contentes com o que temos. E, ao contrário, o efeito colateral de tanta parafernália foi a abertura de milhões de mundos ao alcance de nossas mãos, de nossos ouvidos, de nossos corações, tudo chegando de forma descompactada.

Falta silêncio na terra. Silêncio para escutarmos as batidas dos nossos corações... as vozes interiores. Elas nos guiam pelos caminhos da sensibilidade, da sensatez, que nos conduzem à felicidade e à resignação. Resignar-se, às vezes, faz parte da vida.

terça-feira, 11 de março de 2008

a beira do caminho

Uma linda priscesinha vinha andando pelo caminho... distraída, pensando no que encontraria no final da estrada de tijolos amarelos... tal como uma dorothy cor de jambo, será que ela voltaria para o seu querido Kansas ou qualquer outra rincão do Brasil que pudesse chamar de lar? Ou, no fim do caminho, encontraria um enorme pote, onde o ouro fosse a representação mais pura da realidade?

Ah, mas como é ingênua a nossa priscezinha... wondering (observação: sempre achei que "wonder" é, para a língua inglesa, o que "saudade" é para o Brasil... palavra que os estrangeiros adoram citar, mas ninguém sabe senti-la) wondering, wondering o quê? O Fim? Simplesmente?

Mal ela sabe das belezas do caminho... de cada gota de suor, de cada mutação, de cada esforço que precisa ser saboreado. Ela é nova ainda... eu também! São poucos os que sabem apreciar as delicias do sofrer e da alegria da vida.

De repente, suas delicadas mãos precisam agir rápido, para não cair. O caminho se torna íngreme. Como em um sonho, a trajetória torna-se dura, rigorosa, o caminho fica em 90 graus... subida ríspida, que requer muita força. Seus braços são roídos pelo cimentos. O caminho fica mais extremo. Gotas de suor, doces como o mel, espargem em seu rosto, aos borbotões. Borboletas e passarinhos aproximam-se, delicadas, buscando não desperdiçar nada. Transformando todo aquele trabalho em açúcar para a adoçar a vida.

Quando acredita que não possuía mais forças a priscezinha estancou: no fim do caminho, uma grande luz, que quase lhe cegava. Aos poucos ela consegue delinear o que está do outro lado. Surpresa, perplexa, pela primeira vez ela vê. Ela vê algo antes inacreditável. Sim, como o infante do Pessoa, que vinha correndo sem mesmo saber o que era, descobre que, ela mesmo era, a priscezinha que dormia. deslumbramento. todas as paisagens do caminho passam como um filme. Por fim, a priscezinha cumpriu o seu dever. Seja com "z" ou com "s", ela finalmente se transformou em rainha. Uma bela e sábia abelha-rainha!

quarta-feira, 5 de março de 2008

Cristais

O copo pareceu que lhe escapou das mãos... Como se tivesse voando para encontrar o grande amor dos objetos: a gravidade. Seja o que for o que tivesse fazendo antes, não importam mais as sinapses que passeavam pelo crânio, o fato é que Luísa parou tudo para observar os cristais inertes, paralisados, mortos no chão...

Não sei porque se chama Luísa... talvez porque rima com brisa... brisa do mar ou dos desertos incadescentes. Vestia sempre um vestido leve, transparente, de uma transparência casta, castiça... castiça transparência... castiçal de virtudes. Não uma transparência exibicionista, mas uma transparência que esconde um corpo frágil, de pernas brancas, finas, delgadas. E um tronco que mal conseguia se sustentar.

Seja o que for que estivesse fazendo, não seria mais possível a Luísa continuar depois da queda. Foi imediato! O copo não conseguiu ultrapassar o chão. Deixou de ser copo: passou a ser cacos... cacos cristalinos. Destes copos modernos que, ao se romperem, não oferecem mais riscos de cortes. Copos Insípidos. Copos que não desafiam mais os corpos a sentirem dor. Corpos inúteis.

A mente de Luísa viajava no material que compunha aqueles cristais. Quantos grãos de areia, às vezes irmãos, às vezes inimigos, foram comprensados até a exaustão, numa insana tentativa-demostração de que dois corpos, sim, podem ocupar o mesmo lugar no mesmo espaço ao mesmo tempo. Nem todas as leis são infalíveis!

Agora, os cristais separam-se. O vazio se impunha, seja para separar grãos de matéria com alguma coisa em comum, seja para agrupar, no mesmo exíguo espaço, imaterialidades que nunca vão dialogar. Pra quê? Por quê? Pensava Luísa... Por que o destino, a fatalidade fora tão cruel com aquele copo que, comprado a 5 reais na lojas americanas, era um exemplo de eternidade até um minuto atrás. Será que tinha que ser assim? Será que estava escrito? Se estava, porque ninguém fez nada para evitar...

O que Luísa não pensava, o que Luísa não aceitava, era a sua própria contribuição. Me recuso a escrever a palavra culpa, se bem que não paro de pensar nela: se não tivesse com as mãos ensaboadas e pensando como retribuir a traição de Eliseu, o pobre copo de requeijão não iria sofrer as consequências. Espere: era um copo de requeijão ou comprado nas lojas americanas? Nessa altura dos acontecimentoes, pouco importa.

terça-feira, 4 de março de 2008

Sobre mocinhos e vilões

Finalmente, algo interessante ocorreu na América Latina! Nos meus tempos de estudante de relações internacionais, lá pelos idos da década de 90, tudo parecia estar muito bem resolvido na região. Governos com orientações claramente liberais, com um forte alinhamento com a política externa norte-americana (quem não se lembra das "relaciones carnales" dos argentinos com os norte-americanos?), a questão social completamente encoberta pela necessidade de se cortar gastos públicos e uma crônica crise estrutural de credibilidade marcavam o cenário político e econômico da região

Ventos de mudanças, vindos principalmente da Venezuela, alteraram em parte este cenário. Continuamos pagando juros escorchantes, mas os dirigentes latino-americanos descobriram o discurso norte-americano como bandeira garantida para assegurar a popularidade junto ao eleitorado. E no caso de Hugo Chávez, esse discurso - para o bem ou para o mal - também garante uma certa ascendência no cenário internacional, com bons holofotes e muitas páginas na mídia internacional.

A crise diplomática instaurada entre Equador, Colômbia e Venezuela envolve variáveis muito mais ideológicas e políticas do que propriamente ligadas ao direito. A Colômbia, a meu ver, foi ingênua ao invadir o território equatoriano, em busca de guerrilheiros da Farc. Essa frase precisa ser compreendida dentro de todo o contexto geopolítico da região que, de um lado, contempla uma sistemática campanha antiamericanista protagonizada por Chavez, Correa e seus alinhados na região e, por outro, uma forte ingerência norte-americana na Colômbia, por conta do apoio norte-americano ao combate ao narcotráfico.

A questão é a seguinte: houve um atentado à soberania equatoriana pelo governo colombiano, evidentemente. Mas, ao negociar diretamente com as Farc, ignorando completamente a autoridade local, Hugo Chávez não cometeu uma afronta similar à autodeterminação do país vizinho? Um argumento que ambos podem alegar para se defender é que havia uma motivação humanitária (o que é muito justo. Vidas inocentes não podem pagar pela ação ou omissão de países), mas, na verdade, é que foram, igualmente, ingerências que foram completamente contrárias aos governos estabelecidos.

A questão é que uma invasão material é muito mais patentemente contrária à ordem internacional e aos costumes que uma negociação que apenas permaneceu no plano da ação diplomática - e que foi muito bem sucedida, por sinal. Porém, não deixam de ser, igualmente, violações, tanto da Venezuela quanto da Colômbia.

A impressão é a de que houve a construção de um xadrez geopolítico muito bem arquitetado. E a Colômbia foi a principal peça dessa movimentação. Vamos esperar as próximas jogadas. Mas duvido que haverá algum xeque-mate.

domingo, 2 de março de 2008

A viagem de Poe

O poeta havia sonhado! Ah, finalmente ele se abriu para imagens oníricas advindas do coração. Fazia tempo que o poeta não sonhava. Ele estava faminto por sonhos. Afinal, são eles que lhes trazem as imagens que completam a poesia.

O sonho do poeta era o seguinte: Edgar Allan Poe, pouco lido, mas muito comentado, era carregado em corpo por uma revoada de andorinhas. Em direção ao céu. Em direção ao sol. Seu corpo era carregado por tênus fios invisíveis. O poeta conseguia distinguir a revoada de passarinhos do corpo que se descarnava. Sim, foi dado ao poeta o poder de acompanhar todo o vôo e ele via o corpo de Poe desencarnar, aos poucos. À medida que ganhava altura, perdia peles músculos, carnes, fibras, tecidos... Somente ossos e - incrível - sua bem alinhada roupa e sua cartola permaneciam. Eram imunes ao calor. Eram imunes ao tempo. Eram eternos. Tais como as poesias e crônicas que saiam fervorosamente de suas mãos.

O poeta não sabia rimar. Achava que rimar dava muito trabalho. Pensar em palavras que possam se adequar ao ritmo e combinar com outras palavras era-lhe um absurdo contrasenso. Ia na contracorrente do pensamento. Exigia um imenso trabalho de burilação, que comprometia o sentimento, a comunicação.

O poeta queria a palavra pura, sem nenhuma interferência. Buscava o fluxo direto na fontes, sem que a pura água corresse para o leito do rio. Que ingenuidade. Por mais pura que fosse, essa água já vinha contaminada pelo pensamento, pela correta sintaxe, pela ordem exata. Pela necessidade do outro entender.

Mas quem liga para que o outro queira entender? O poeta, neste momento, quer se entender. Quer se compreender. Não está preocupado com orações coordenadas, subordinadas, exatas compreensões da sintaxe, da prosódia, da coerência e da coesão. O que importa é somente o fluxo do coração. Coração que, encravado nos ossos, ainda não desencarnou na grande viagem empreendida pelo cadáver de Poe ao infinito!

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

E vem o coração e diz;;;

Sábado de madrugada. Já passa das 4h da manhã e, se duvidar, corro o risco de ver o dia nascer. Solitário. Ao contrário da música de Cazuza.

Mas eu preciso escrever! Preciso colocar aqui aquilo que oprime meu peito, me faz respirar, prende o meu ar, me faz pensar em tantas coisas contraditórias. Me faz viver.

Acabo de voltar de um encontro com amigos. Bons amigos. Companheiros, leais, que torcem por mim, acreditam no meu potencial. Até muito mais do que eu mesmo. Mas que erro absurdo este que eu cometo de não acreditar de mim.

Antes de chegar ao local do encontro, tenho a grata surpresa de ouvir Nana Caymmi cantando "Em Teus Braços". Gosto desta interpretação que, à esmo, como uma roleta russa emocional, inclui no meu tocador de MP3 (ainda não estou na era do Ipod, acredita?). Começo a chorar no carro. Apesar de sentir que ela - uma cantora tão cavernosa - fez algumas concessões, procurou suavizar a voz, dá para sentir o eco da bela letra de Tom na minha alma.

Mas porque isso? Sinto que é uma música inacabada. Tal como é a nossa vida. Ela pede um complemento, que o maestro, sabiamente, negou. É um complemento que nós temos que infringir ao nosso destino. "Que só em teus braços, amor, eu ia ser feliz"... todos nos sabemos! O Felizes Para Sempre está lá, incrustado nos contos de fada... Mas o que será esse "Pra Sempre", meu Deus?

Eu vou confessar... este blog é o mais íntimo desde que comecei a escrever. Eu tentei não dar nenhuma dica do que eu sou... mas não resisto. Tive um cancer no olho esquerdo. Devido a várias cirurgias, ele é um pouco mais abaixado que o esquerdo. Sabe o vocalista do Radiohead? Pois é. Mais ou menos como o dele.

Porém, isto nunca me atrapalhou. Sempre fui um bom aluno, com boas notas e, sem perceber, com uma forte personalidade. Personalidade que sempre atribui aos meus sofrimentos aos 6 anos. Era um peso demais para uma criança carregar. Neguei que existia o problema. "Eu sou normal!" repetia a mim mesmo sempre. "Hei de vencer", era o meu lema.

Qual o preço pago por esta luta? Uma negação intensa do meu "Eu". Uma busca desenfreada pela perfeição nos outros. Nunca dentro de mim. Tinha vergonha de olhar para dentro de mim, com o meu olho bom e o meu olhinho capenga. Imaginava-me apoderando-me do olho dos outros, do corpo dos outros, que não eram meus!

Por que meu Deus? Para chegar a essa idade sem uma personalidade definida. Sem uma história percorrida, totalmente perdido na encruzilhada das minhas emoções, vivendo a vida dos outros, tentando encontrar o restolho de mim em outras vidas que não foram nunca minhas. Que nunca serão minhas.

Era um menino que gostava de letras. Nunca gostei de imagens. O Menino Maluquinho, para mim, era um engodo. "Para que tantas imagens gigantes cobrindo as páginas?". "Onde estão as palavras?". Gostava das palavras, acariciava-as a cada leitura, voltava quantas vezes forem necessárias para decrifrar trechos e trechos de expressões que me fascinavam. Isso explica o fato deste blog não contar com imagens de suporte. Nunca precisei delas. Ou será?

Era um menino que gostava de escrever. E escrever poeminhas. Redações. Historinhas. Esse menino foi sendo asfixiado por falsas pretensões. Por fingimento de uma pessoa que nunca foi, que nunca era, que nunca estava. Passei 20 anos sem escrever, culpando a preguiça, a correria, o livro da faculdade, o lugar no futuro a me esperar - que futuro? onde está a felicidade?

Era um menino que, na terceira série, ia com uma mochila lilás que adorava, que usei até acabar e acusado de bichinha pelos colegas maldosos. Mas que não ligava. Encontrava forças em mim mesmo e na minha mochila poderosa. Na minha capacidade de argumentação. Na minha inteligência.

Onde está este menino? Será que ainda vive dentro de mim ou foi comprensado pelas necessidades da vida. Sinto que preciso dar fôlego a este menino, preciso dar-lhe amor. Para que ele abra os olhos e veja! Veja, seja lá o que for, antes que seja tarde! Que seja destemido! Que nunca tenha medo de viver! Que nunca tenha medo de ninguém! E, principalmente, que nunca tenha medo dele mesmo e da felicidade que o aguarda na próxima esquina. Sim, a felicidade é tão almejada. Mas ela pode ser perigosa. A Felicidade anestesia.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

29 de fevereiro

Amanhã é mais um dia desesperadamente esperado por uma parcela ínfima da população. Aqueles que podem mentir deslavadamente a idade, que ninguém vai recriminar.

Me lembro que, quando estava na segunda ou terceira série, uma menina, bem bonitinha, aprumada, da minha sala completava aniversário em 29 de fevereiro. Antigamente, era uma aberraçãozinha ter que dividir a sua verdadeira idade por quatro e informar que estaria completando, na verdade, 2 anos...

No nosso mundo contemporâneo o luxo, a exclusividade, a primazia dos poucos e bons é valorizada. Um mundo que, contraditoriamente, convive frontalmente com a civilização fútil dos BBBs, do culto da celebridade e do aparecer a qualquer preço. Sim, fazer aniversário em 29 de fevereiro ficou legal, exclusivo, chique. In.

O sonho acabou

Pois é...

O Brasil estava torcendo desesperadamente para que o furto dos computadores da Petrobrás configurasse espionagem industrial. Já pensou? Acionarmos a Interpol, chamarmos James Bond, os Superamigos, até mesmo o Chapolin Colorado para resolver este mistério?

Pois é... nossos ladrõezinhos de galinheiro ainda não provocaram tanto estrago. É uma pena... Mas há um lado positivo: para estes, há Justiça. Agora, quando se sobe na hierarquia da bandidagem, acho que nem o Superhomem resolve.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Inveja

O cio tem inveja de Marlon Brando.
Queria contar com a sua destreza
Queria dominar com o seu poder.
Queria anestesiar mentes e corações
tal como o éter!

Mas como operar este feito?
Se Marlon Brando nasceu Marlon Brando
E o Cio é simplesmente o cio?

Ele tentou várias artimanhas:
instigou o tempo
para fazer Marlon Brando envelhecer

Mancomunou-se com a depressão
Para tirar-lhe a vitalidade

Buscou acordos excusos com o peso
para inchar-lhe, preencher-lhe
de uma gordura aparentemente abjeta

Deu-lhe grandes problemas familiares,
cercando-o de escândalos, suicídios
ódios, temores e falta de amor...

De nada adiantou... a sua magia
prosseguiu até o final.
Marlon Brando é Marlon Brando
e o Cio é apenas o cio.

Observação: o que eu tentei exprimir por pobres palavras, pode ser constatado no seguinte vídeo http://www.youtube.com/watch?v=S1A0p0F_iH8

Insônia

São 2 horas da manhã e o sono me foge. Corro atrás dele, mas ele sempre vai adiante. Não, não estou deprimido. Também não estou eufórico. Eu só sinto uma grande saudade. Postei alguns scraps para amigos queridos, porém distantes. Pessoas que não vejo há muitos anos, há muitos meses, há muitos dias, há muitas horas. Não importa o tempo! Importa é essa distância-proximidade que nos separa e nos une, ao mesmo tempo.

Uma carta que enviei a um amigo, que mora na Jordânia. Voltou. com um carimbo em árabe. Mesmo não compreendendo esta lingua, é claro que algo faltou para que a missiva chegasse no destino. Espero um contato deste amigo com o endereço completo. Espero que não demore. Cartas escritas com esferográfica são como pão quente. Estou quase desistindo de enviá-la. Tornar-se-á pedra. Perderá o efeito do milagre. Não mais alimentará. Precisaria ser comido na hora. Urgente!

O destino também é fugidio. A gente sabe que ele existe e o buscamos, sem sucesso. E quando não o buscamos, ele nos bate à porta, sorrindo ou chorando.

Estranho, pela primeira vez escrevo algo sem ter um título à cabeça. Tenho por costume titular primeiro essas crônicas e depois desenvolver o texto ao sabor da febril atividade do coração, dos sentimentos e da mente, a santíssima trindade. Por isso, muitas vezes, não há correspondência entre títulos e textos. Não estou nem aí. Quem disse que casamentos precisam ser perfeitos? Só os contos de fadas, na parte do felizes para sempre, que nunca, jamais! ninguém teve coragem de nos contar.

Deu uma vontade louca de ouvir Buena Vista. Ouço Ibrahim Ferrer e companhia agora. É um som que me toca... penetra na minha tristeza absurda e na minha curta felicidade. Tem um tanto de melancolia, com uma pitada de ironia, ingredientes básicos para sobreviver à rotina. Li no blog de uma amiga um elogio à rotina. Concordei com ela. Porém, é tão difícil convidarmos essa senhora monocórdia a habitar os recônditos de nossas moradas. Ela não tem um cheiro agradável. Não chega a feder, mas incomoda. Sempre buscamos perfumes, atavios e artifícios para disfarçar a sua presença.

Dizem que todos temos um cheiro específico, próprios de nossa personalidade. Por que teimamos em disfarçá-los com essências e especiariais que padronizam os tudos, criam estilos, sejam sofisticados, sejam de puro desespero? Os perfumes serão marcos de classes sociais? Dividimos as pessoas entre as que usam rexona ou dolce gabbana? Ambos são aceitáveis. O que não se admite é o puro cheiro de cecê. O odor característico da personalidade, da humanidade.

Pensamentos são nexos: os puristas, ao ler estas linhas, me acusarão de falta de coesão e de coerência: onde estão as marcas de interligação textual, tão admiradas, procuradas e analisadas nos concursos públicos - tão em voga na atualidade - e nos vestibulares? Não, aqui, para eles, não há lugar. Eles já dominam demais o mundo! Aqui, reina a desordem, impera a anarquia de palavras e de idéias. Só não tenho coragem de me tornar ininteligível.

ai se eu pegar um erro de português inadvertidamente cometido! Só valem aqueles propositais, afins de provocar a argúcia e despertar o ódio dos perfeccionistas. Os que brotam naturalmente, os que apontam para as nossas fragilidades e nossas imperfeições, esses são imperdoáveis. Viva o imperfeito!

Entrei numa armadilha agora! Não tenho um fecho, não pensei num chavão de ouro para completar esta crônica... sabe, tô com preguiça hoje. Vou dormir! Até a próxima, se o amanhã permitir. Ah, e o título vai ser insônia... afinal, é isso que acomete, mesmo. Deixemos o "Sem Título" para outra ocasião mais desesperada...

Ah, não quero ir embora, queria continuar escrevendo mais blablablablabla zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz...

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Responda rápido

Onde os fracos tiveram vez:
Resposta: Na cerimônia de 80 anos do Oscar

O desejo no cio

Sim, muitas vezes sou como uma pequena criança, que se deleita ao ver repetidas vezes o mesmo filme. Parece que meus olhos, meus sentidos, minha mente, meu coração recusam-se a finalizar determinado tema e eu preciso, novamente, voltar às fontes.

É o que ocorre com a atuação de Marlon Brandon em A Streetcar Named Desire (no Brasil, traduzido por Uma Rua Chamada Pecado, mas que particularmente prefiro nomear Um Bonde Chamado Desejo). É incrível como, simultaneamente, Brando transmite as carências afetivas de uma criança e o desejo saltado de um cão em pleno cio. O desejo em seu formato bruto que desnorteia a confusa Blanche du Bois e que deixa Stella sem alternativa. Ela tem que obedecer a esse chamado, tal como um zumbi. E, não! não a condenem! Ela é feliz neste Estado. Se não obedecer, a loucura tomará conta.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Estátuas de barro

Hoje, joguei-me no abismo da tristeza, onde as lavas incandescentes da amargura estavam lá, a me esperar... Não sei se estou escrevendo certo, os sentimentos não admitem recursos. São muito mandões, os sentimentos, mandam-me escrever agora! Depois eu vejo se lava se escreve desta forma.

Não! Não fugirei desta vez com pensamentos fugidios, quero mergulhar até o fundo nesta tristeza que me abate. Não uma tristeza depressiva, mas uma melancolia própria de um ser humano que tem alma, cérebro e coração. Vejo barro, barro e mais barro ao meu redor. Será o barro constituinte de nosso corpo? Aquele mesmo que serviu de material a Adão, que criou a costela que formou Eva? Que serviu de instrumento à cura do cego?

Pensava isso quando o refluxo me puxou à tona, me levando à superfície. Me levantei. O contato da incandescência com o gélido vento da vida provocou um endurecimento da lava. Meu molde ficou perfeito. Fiquei ali, parado, a observar, observar... tudo isto que me forma, tudo isto que condiz com a minha existência humilhante e exaltante.

Revoadas de beija-flores e pintassilgos tentavam me reanimar. Sim, talvez seja de barro e tristeza a formação da seiva que alimenta as flores, que os alimenta diretamente. Seu pequeno sopro, o instantâneo revoar de suas pequenas asas eram um refrigério ao coração. Esses movimentos me consolavam, me deixavam contentes. Eu tinha certeza de que, pelo menos as minhas lágrimas, a minha humanidade, estariam a salvo. A pior coisa que existe é uma tristeza que te imobiliza, que não te provoca nenhuma, nenhuma lágrima quente... Graças a Deus que era uma estátua de barro. Estátuas de sal afugentam os beija-flores e os pintassilgos!

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Tentações

Quando o mitológico Ulisses, protagonista da Odisséia de Homero, precisou passar por determinado trecho de sua viagem, ele foi obrigado a se amarrar ao mastro do barco e tapar os ouvidos para evitar ser atraído pelo canto de belas mulheres que causavam a desgraça dos marinheiros. No folclore indígena, é famosa a história da Iara, que arrasta para o fundo dos rios todos os homens, atraídos por seu mavioso canto.

O que ocorreria se esses homens não resistissem a essas tentações? Que outros mundos eles deixaram de conhecer ao se recusar, bravamente, a ceder aos cantos das sereias... será que o curso dahistória e da História seria alterado caso Ulisses desviasse de sua rota e passasse uma noite, uma vida ou várias gerações (neste ponto, a determinação temporal pouco importa). Que outros mundos as iaras indígenas queriam apresentar aos incautos que caíam em sua maviosa voz?

Em Sweeney Tood, o mais recente filme do diretor Tim Burton, um dos personagens cedeu a esse encanto, ao ver a bela filha do protagonista - presa tal qual um passarinho na gaiola - lamentar a sua dor. Só de haver sobrevivido à trama macabra e sanguinolenta (sorry, não resisto a contar o final de filmes) já é uma imensa recompensa à sua ousadia!

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Correção

Um amigo muito atento e perspicaz, ao ler o post "Nossa Madame Clessy" me perguntou: Nesta montagem, a personagem da cortesã não teria sido interpretada por Nathalia Timberg? Fiquei em dúvida. Li em um site que Tonia Carrero foi encarregada do papel, mas outros sites informam que coube a Nathalia Timberg interpretar. Joguei as duas opçoes no Youtube, mas sem sucesso. Se alguém puder confirmar a informação, agradeço! E peço desculpas a todos pelo erro. Porém, mantenho, acesa, a minha Clessy afrancesada...

indecifrável

A incomunicabilidade reina nos sentimentos amorosos. Nos cruzamentos de olhares, o amor vem sempre acompanhado do medo: um temor irracional de desagradar, de causar repulsa, da não-correspondência. Nunca nos vêm à cabeça que o fato de o outro se sentir amado pode superar todos os temores, reais e imaginários. Porém... ah! porém! nós temos até medo de causar este sentimento de ser amado.

Por isso, a solidão reina! Já não há mais esfinges que nos desafiem em enigmas. Estamos muito confortáveis na nossa posição, para que avançar? Para que ouvir a voz do coração e tentar ser feliz! Existirá essa quimera chamada felicidade? Ela é uma sensação que combina com o amor, como o arroz combina com o feijão? Ou será que o amor está de flerte com a dor e com o coração dilacerado? Um flerte que não, necessariamente, resultará em relações carnais. Mesmo porque elas já se esqueceram do amor, há muito tempo, em algum lugar do caminho, longe das vistas dos mais potentes espelhos retrovisores. Não nos entregamos mais por inteiro!

As palavras são impotentes para nos proteger dessas sensações vertiginosas. Agora, ouço a voz rouca e deprimida de Maysa e me ponho ainda mais em dúvida se haverá esse paraíso amoroso. A verdade é que um inferno de sensações aquece meu coração. As dúvidas, os medos superaram as delicias do prazer. A nossa finitude e a incerteza de haver um porvir são mais fortes.

Pois é, fica o dito pelo não dito. Não há regra gramatical que se aplique para as descorrespondências... gosto da palavra shelter, abrigo em inglês. Ela é uma palavra acolhedora realmente. Você a escuta. Você se sente até mesmo mais seguro. Mas é uma palavra apenas. Pode ser uma mentira, que suportamos até por uma certa conveniência. Porém, até quando?

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Eletrocardiograma

Meu coração não quer nada!
Meu coração quer tudo!
Meu coração não sabe o que quer...

Ele quer olhar todas as coisas
Ele quer saber de toda a sabedoria
Ele quer compreender todos os mistérios...

Mas a razão - sempre ela! Vem dizer
que não é possível, coração
Acalme-se! Deixe um pouco para outras dimensões

Mas meu coração, este objeto teimoso,
não quer saber! Quer sofrer, quer chorar
e não ouve ninguém

Mal ele sabe que é uma caixa...
uma frágil caixinha... quebradiça, de Cristal
simples caixinha... onde ressoam, pulsam, falam
vozes de todos os timbres, de todos os tamanhos

Vozes que dizem coisas desconexas
Vozes que fazem sons dissonantes
Vozes que gritam com urros altissonantes...

Dizendo mensagens incompreensíveis
Clamando por desejos inalcançáveis
Querendo subir morros inatingíveis

É o coração pertubador - arrancado da tumba de Poe -
Que bate, ressoa, grita, querendo acordar este corpo moribundo
essa pele ressequida de seu coma...

E entre tantas vozes, a dEle se sobressai - dizendo
Coração, libere os seus moradores, seus fantasmas
dê ar às cordas vocais, para que o que está escondido saia

Somente desta forma é que vc diminuirá o trânsito de sinapses
que produzem um congestionamento monstro em seu cérebro
tal como a saída da Anchieta-Imigrantes em véspera de feriado

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Sem fôlego

De repente, o msn - como uma grande caverna- se abriu com uma pergunta que não esperava:
"Posso lhe fazer uma pergunta?"
Pronto - pensei comigo - ele adivinhou a minha paixão... e agora? o que faço? talvez as próximas cinco palavras (mais o acento interrogatório) detonarão um período curto, porém incessante, de puro êxtase e felicidade, traduzidos em meros instantes eternos... talvez não há de ser nada, ele só me pergunte como deverá estar o tempo no próximo fim-de-semana... afinal, eu sei de tudo. A prosa me deixa onisciente.
Mas como ele terá descoberto as minhas intenções? O que em mim, me denunciou? O meu olhar maroto, caçador, voraz, semelhante ao do leão que avista a sua presa? O sorriso no canto do lábio que desnudou toda a minha lascívia contrita? o maneio de uma cabeça repleta de sentidos multidimensionais.
E se ele me perguntar se eu amei alguém? E se ele perguntar se eu o amo? Pior - se ele me perguntar se eu me amo? Pobre de mim que sou. A música incidental para este momento, me acusando da minha latência, provém do Deus Vinícius entoado pelo profeta Milton... "Você não sabe o que é o amor, não sabe, eu sei... Você já chorou de dor? Pois eu chorei..."
Tento reagir... Por um acaso você soube o que é o amor, Vinicius? Você que passou por esta vida o procurando, tal qual um cavalo ou um coelho, cuja cenoura suspensa acima de sua cabeça o faz vagar sem esmo em busca de saciar uma fome que nunca será saciada... O amor é essa armadilha que ninguém sabe definir e nunca, jamais! ninguém saberá significar. Eu também tenho a minha cenoura!
Fico sem fôlego diante de tanta expectativa... O tempo congela-se a ponto de se enxergar pequenas gotas de orvalho, imobilizadas... no ar, na contraluz de um luar de uma gorda lua cheia, imensa, a nos sorrir, sem saber porquê... talvez zombando de nossa breve condição humana, que não nos dá a graça de enxergar todo o processo, talvez apenas transitar - a esmo - por ele...
O tempo passa rápido, como em uma pequena ampulheta, se escoa a areia do meu desespero... estou sem fôlego, atônito, com os olhos revirando em busca de algum socorro... pareço um hipocondríaco na fila da montanha-russa... me lembro de uma amiga me contando que, no caso das máscaras de despressurização caírem, temos pouco tempo para as colocar, porque o avião cairá em menos de 2 minutos para poder nos conceder o ar de nossa sobrevivência... Não! Não! o meu coração, que ama a estabilidade, não aguentaria essa queda abrupta... pararia de bater no primeiro segundo. quero sair! num passe de mágica, de preferência, mas não posso! não posso!
Enfim, vieram as cinco palavras fatais... os aproximadamente 50 caracteres que, agrupados em determinada ordem, dão sentido a um período... o meu respiro é de um alívio. A turbulência passou. Começou a chuva torrencial. Montanhas-russas não funcionam com umidade. A pergunta era sobre uma trivialidade tão banal que até me esqueci. Por hoje, estou salvo! Mas até quando, Meu Deus?! Dê me coragem para enfrentar este enorme medo de falar!

P.S. Quis escrever sobre o suicida da Castelo Branco hoje, mas o meu coração me mandou escrever a coluna acima. Perdão aos que esperavam algo para esquentar este blog... quem sabe em outra ocasião.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Desejos...

Não! Não quero sentir minha quente carne em contato com a fria lage! Enterrem-me na grama, na terra. Não deêm mais trabalho aos vermes para deglutir este corpo macerado pelas ondas da existência e transformá-lo em energia renovada e vida... Quero ficar debaixo de uma árvore frondosa, de preferência no parque do ibirapuera, sentido os raios do sol e as gotas de chuva perpassarem e ultrapassarem os tênus, invisíveis e intangíveis fios de minh´alma...

Tudo isso porque não sei controlar o meu desejo, que me leva à autodestruição. Quero pegar o sol! Mas não posso... Tal como Icaro, morrerei icinerado milhões de anos-luz antes de poder vislumbrá-lo

Quero beber toda a água do mar! Me é impossível... toda a água do mar não caberia neste mísero corpo e me seria doentio dar vazão a todo este sal...

Então, o que fazer com este desejo? Contentar-me com a minha simples condição de humano?

Deus, para mim, não me é mais um mistério. Sinto-o dentro de mim, caminhando comigo. Meu grande mistério sou eu!

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Ante(i)visão

- Tire seus óculos!
- Pra quê!
- Para enxergar o mundo como ele é. Para ver as coisas como elas são!
- E se me recusar!
- Estarás negando à sua existência a oportunidade de distinguir a palidez da morenice, a estupidez da sensatez, o claro do branco, o amor do...
- O amor do...?
- não sei! Falta-me antônimo para o amor. Talvez porque não me é claro um conteúdo para esta palavra. E sem conteúdo, não há como definir, não há como comparar, só há como sentir... mas sentir o quê?
- Pois as minhas sensações vêm da visão e eu preciso de meus óculos para defini-las
- Os óculos podem te ajudar a distinguir o material, mas confundem os espíritos. Na verdade, quanto mais perfeitas são as definições, menos claros são os sentimentos.
- Isso significa que posso estar não enxergando com os meus olhos?
- Enxergas, porém somente a superfície, o plano, o presente. É preciso um esforço maior para enxergar em outras dimensões, em outros tempos. Ficar sem os óculos é um exercício. Um estágio para a antevisão!
- Que antevisão?
- A antevisão das coisas. Que pode, perfeitamente, se transformar numa antivisão. O anterior, muitas vezes, vira o antônimo. O ódio transforma-se em amor em um passe de mágica. Em outro, é o amor que vira ódio, em instantes. O perfeito enxergar já te dá tudo? A dificuldade em ver te estimula a sentir, a passear pelos ventos que se refestelam nas asas das aves em pleno outuno, no odor de uma refeição feita com amor, te faz passear alucinadamente nas esquinas energéticas dos raios que produzem a química amorosa. Te atraem para o teu centro. Você é o Centro!
- Mesmo sem enxergar?
- Poderás ter a ilusão de não estar enxergando, mas estarás vendo muito mais que as simples penumbras e os borrões. Não te deixes proteger pela claridade de vista. Às vezes, ela é enganadora. Às vezes, ela é um artifício. Sempre, ela será uma construção.
- Construção de quê?
- Construção das ilusões que te cercam. Dos castelos que aprisionam a tua intuição em mera formalidade. Das sensações que orientam seus outros sentidos. Da forma como realmente és, e não como o mundo te formata. Hás de te aceitar em primeiro lugar, para, posteriormente, aceitares seus alteres. Essa é a perfeição.
Cansado de argumentar, resolvi tirar os óculos. E caminhar no curto espaço que nos separava. Tropecei numa mesa. Sangrei. Sim, enxergar o mundo com outros olhos é muito bom. Mas ninguém havia me avisado de que o preço disso seria uma dor. A dor de viver!

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Nossa Madame Clessy

Vestido de Noiva foi um marco na moderna dramaturgia brasileira. Fato inegável, constante nos melhores e mais respeitados livros de história e de literatura do país. A divisão por planos, a confusão mental, principalmente de Alaíde (a noiva em questão), que morre tragicamente atropelada, reflete um pouco a torrencial e atabalhoada corrente de pensamentos que perpassa nossos neurônios e nossos músculos.

Na montagem feita pelos Satiros, em cartaz até o próximo domingo no Itaú Cultural, em São Paulo, Alaíde me parecia mais dúbia. Ou será que a mim - Bentinho que sou - ela se revelou uma nova Capitu, que não sabe se matou ou não o marido com golpes na cabeça, que foge, a qualquer custo, de seu destino trágico, que é ser traída (ou supostamente traída) e igualmente morta (ou supostamente morta) por sua própria irmã e seu marido?

Mas não foi Alaíde, Pedro ou Lúcia, o que mais surpreendeu nesta revisitação ao universo rodriguiano. O mais chocante foi o que se revelou por trás de Madame Clessy, a velha cortesã cujo diário e o escândalo de um relacionamento com um menino de 17 anos povoaram a fértil imaginação de Alaíde.

Em princípio, a interpretação de Madame Clessy por Norma Bengell me chocou. A imagem mítica da personagem, talvez influenciada pela clássica interpretação de Tonia Carrero no famoso teleteatro da TV Cultura, se desvaneceu. Esqueça o perfume, a sofisticação e até mesmo o sotaque afrancesado. Você não encontrará nada disso na Clessy de Bengell: rústica, quase um diamante que se desgastou pela forte ventania do tempo e pelo abuso da vida. Em nada, nada, ressoa o mito que povoa as nossas cabeças, a não ser os poucos arroubos românticos e pueris que invadem a sua fala, seus suspiros, seu olhar.

A genialidade de Nelson Rodrigues pode ser encontrada no artifício que ele encontra ao espalhar - tal qual Machado de Assis em Dom Casmurro - falsas pistas na longa, sinuosa, acidentada e perigosa trajetória de Vestido de Noiva. Enquanto alguns jornalistas emolduraram a cobertura da morte de Madame Clessy, reforçando o seu mito e jogando mais lenha seca na incendiária imaginação de Alaíde, outros já vão secos na secura da história: uma velha prostituta que morreu apunhalada na face, pelo seu namorado adolescente.

Em que devemos acreditar? Na glamurosa morte de Madame Clessy, cheia de vida, no auge de sua carreira ou na tragédia que a acometeu? A única certeza é a da data da sua morte, em um longínquo ano de 1905. Nem a moda e os costumes de outrora sobreviveram, mas as suas memórias e a sua lenda ainda ecoavam pelos cantos umedecidos e repletos de teias de aranha do castelo.

Pouco saberemos porque não sabemos nem se Clessy foi uma realidade. Ou se não foi um simples nome de guerra dado a uma pobre nordestina migrante, moradora de Bangu, a princípio formosa, que não tinha nada a mais a oferecer que não o seu corpo, mas que, com o tempo, tornou-se banguela, pelancuda e esclerosada. Essa pobre mulher, com nome de batismo Maria das Dor, não mereceu nem mesmo a misericórdia do escrivão do cartório, que não fez a devida concordância e deixou seu nome nos arquivos, eternamente, grafado de forma errada. Não, definitivamente não! Madame Clessy é muito mais elegante! Apesar de etéria e, pout-être, não passar de mera ficção...

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

O gato de Floripa

Não devia ser adulto. Pelo tamanho, pelugem e carência, o gato da casa de veraneio de Floripa não passava de um filhote. Como todos os outros gatos, é impossível descobrir, de cara, se é macho ou fêmea. Sabiamente, a natureza reservou aos gatos a capacidade de esconderem a sua condição sexual e se revelarem apenas no momento certo.

Porém, uma coisa era sabido. O bichano estava em sua dura missão de aprender a ser gato. Sim, talvez como os humanos, todos os animais devem passar por um período - mais curto ou mais extenso - de aprender o que é ser Eu. Ou será que todos nascemos com alguma predisposição que se revelará em breve ou frustrará toda a nossa espontaneidade?

Só sei que o gato demonstrava outra característica peculiar da sua juventude: a audácia em viver. Embora cercado de desconhecidos, ele não temia ser acariciado, chamado de fofinho, alvo de brincadeiras típicas que só adultos fazem com os gatos. O fato de sussurarmos entre os dentes, usando o agudo máximo da voz - bixanbixanubixanbixanu - soava-lhe como música aos ouvidos.

E, como bom gato que era, ele insistia em seu caminho. Ficava em cima do telhado eternit, tomando impulso para saltar. Ao perceber que conquistou o afeto dos temporários moradores, já passou a querer, insistentemente, invadir a casa. Ops! Intimidade tem limites e, afinal de contas, xixi de gato em uma casa estranha é uma das piores coisas que pode acontecer a um grupo de amigos em um simples veraneio em Florianópolis. O gato já aprendeu desde cedo que o simples desejar não significa necessariamente conquistar. E é bom. Ele aprendeu no momento certo e evitou grandes frustrações futuras.

Os miados insistentes em busca de comida e o olhar: sim, aquele olhar maduro, fixo, amoral, que busca a sedução do alheio, definitivamente, mostram que o jovem gato está em seu caminho certo: o de se tornar um maduro gato para, posteriormente, crescer, reproduzir (seja qual for o seu gênero), gerar novos gatinhos filhotes e, após, morrer, e morrer miando.

Este é o seu ciclo natural, ao qual ele não escapa. A condição que a natureza lhe impôs e que ele respeita, como forma de garantir a sua integridade. Sim, meus amigos, por mais que ele queira, por mais que ele fuja de sua mera condição de gato, a verdade é que, jamais, o gato poderá latir.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

pequenas pérolas noturnas...

Ainda sobre Amy Winehouse...

As declarações de Natalie Cole, de que a premiação da cantora inglesa seria um mau exemplo para a juventude, faz suscitar uma dúvida: uma cerimônia como a do Grammy deve levar em conta efeitos morais para conceder o troféu a um artista gabaritado ou esquecemos de que são critérios artísticos que devem guiar a decisão dos jurados?

Ainda sobre Amy Winehouse - parte II...

Vou me esforçar para que as considerações sobre o caso encerrem-se aqui. Mas não me responsabilizo por provocações futuras...

Sobre Formigas e Sapos

Em relação à ética do trabalho, comentávamos, eu e uma querida amiga, sobre os prazeres de se criar uma vida inteiramente calcada no trabalho e em relações pessoais e de suas dificuldades, principalmente em relação aos sapos engolidos durante a longa estrada...

Sorte que os sapos são mais facilmente deglutidos pela dignidade...

...

Reparem o excesso do uso de reticências... não consigo me controlar... é pensamento demais para pouco vernáculo!...

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Amy Winehouse

É certo que o mundo das celebridades tenta criar alguns produtos culturais consumíveis... Madonna, como dizem uns amigos meus, brilhantemente, foi uma das poucas que conseguiu inverter o jogo. Reza a lenda que não Ela não precisa mais da mídia, mas a mídia precisa de Madonna...

Pode-se dizer, por outras razões, que este é o caso de Amy Winehouse, a grande vencedora do Grammy deste ano e que, ironicamente, não pôde comparecer à cerimônia, com o visto negado supostamente por seu envolvimento com as drogas

Digo que as razões são diferentes porque nela realmente se sente uma energia que é ancestral. Não só no clipe de "Rehab" - seu grande hit - mas em outras canções, ouve-se a reverberação de um time de cantoras de jazz que, no passado, impunha uma grande força em suas interpretações. Infelizmente, não conheço todas, mas Dinah Washington, com seu timbre um pouco nasalado e uma potência segura, é uma delas.

Mas a grande arma de Winehouse está no seu olhar. Ao demonstrar, no clipping, insubordinação enquanto, teimosamente, se nega a ir a uma clínica de reabilitação, ela demostra a inquietude de uma verdadeira artista. Um certo inconformismo em relação ao mundo e à sociedade que é paradoxal às declarações que deu de que seu vício em drogas é incurável.

Mais paradoxal ainda: um inconformismo que vende jornais, que atiça a curiosidade da sociedade do espetáculo e que contribuiu, de certa forma, para a conquista de uma premiação no país mais careta do mundo, assolado por uma onda neoconservadora há vários anos e que corre o sério risco de continuar no poder. Esse público aplaude de pé e premia um talento que leva um estilo de vida absolutamente incompatível com os seus dogmas.

Ou estamos diante de uma grande incongruência ou realmente a nossa sociedade do espetáculo é bastante hipócrita!

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Olá

Esta é a minha segunda tentativa de se criar um blog. A primeira se perdeu no vento, no esquecimento da minha memória e do intrincado, perigoso e insinuante jogo de palavras que a extrema proliferação de diários virtuais nos obriga a adotar.

E foi bom! É possível que, no momento em que criei o outro blog, o cosmos ainda não havia conspirado para a sua verdadeira inspiração. E ela veio com a grande Clarice. Este título, que graças a Deus ainda estava disponível, é inspirado em sua obra, que reúne as crônicas desenvolvidas para o Jornal do Brasil entre 1968 e 1973, "A Descoberta do Mundo".

Este blog serve para redescobrirmos nossos mundos: seja o nosso mundo interior, nosso pré-mundo, a dura realidade que cerca a nossa volta, a doce vida que, com o espírito leve de uma brisa, vem refrescar o inferno de sermos o que não somos perante os outros. Os pensamentos que não temos coragem nem para revelar a nós mesmos, terá espaço seguro aqui.

Enfim, neste espaço, tudo é possível, tudo é criticável, tudo é passível de elogios e de vaias. Ingresse nesta viagem e venha ser feliz. Não é necessário falar das novidades do dia. Assuntos antigos, mas eternos também são benvindos.

Aos seus lugares!

Rui Santos