quarta-feira, 7 de maio de 2008

A Valsa da Morte

Aquilo que não nos mata apenas serve para nos fortalecer. Machado de Assis teria dito que as mais lindas flores nascem dos mais fétidos extrumes. A verdade é que, na corda bamba que sustenta a tênue distância entre a vida e a morte, Ernesto estava se tornando um exímio malabarista. Com suas garrafas à mão, buscava, incessantemente, um equilíbrio tão inexistente quanto o amor idealizado.

Messias apenas ouvia uma valsa, que, em princípio, era composta de um ritmo mais devagar, acompanhando o andor. Esse ectoplasma de personagens, pessoas, emoções e experiências se ressente, neste momento, de não ter frequentado aulas de música clássica ou não ter às mãos um dicionário de música para exibir o seu falso palavriado de expressões latinas para descrever melhor o andamento da música. Resta dizer que, como toda a valsa, ela chega a um ápice, onde os bailarinos, trajados em suas vestimentas oitocentistas, buscam simplesmente acompanhar o andamento, sem sentir as vibrações do universo.

Terão se passado quantos dias, minutos, horas? Parecia que o tempo se imobilizou. Porém, na verdade, ele apenas prosseguiu. Incontinente. Pouco se importando para os fatos. Apenas o seu com-passar importa neste momento. Sentimentos, palavras, audácias, cheiros, tudo isto - que deveria ter ficado a cargo da memória para doces lembranças - se esfumou. Em que esfera, em que canto do corpo se abrigou todos estes fatos aniquilados por entorpercentes químicos? Só não
restou outra coisa senão o bailarino cair, fulminado, no palco, frente à uma platéia sádica, esperançosa, esperando o gran finale.

No chão, só de uma coisa esse bailarino tinha certeza: a volta é lenta, a recuperação é demorada e o público, cético. E tudo isso é necessário e precisa ser feito em segundos. Amigos e parentes são confiáveis, mas fora deste íntimo círculo, reina a crueldade, a maledicência e a própria incredulidade. Incredulidade a respeito de si mesmo, e de seu amor próprio. Essa ferida é a que mais dói.

A consciência demora a voltar: dois dias ineptos, onde um esforço físico é feito para se retomar as rédeas da vida. A memória tende a não obedecer, perguntas são repetidamente refeitas, para que haja uma certeza de que realmente tudo o que ocorreu, ocorreu. Mas para quê, meu Deus?

Será que no terceiro dia, Jesus sentiu a mesma fome do bailarino? Uma fome cruel, física e transcendental? Será que só saciará esta fome o mesmo pão da vida, que Jesus anunciou ser ele mesmo? Que ele deve ter deglutido para encontrar a força necessária para voltar dos mortos e trazer esperança. A tão esperada e mítica vitória sobre a morte. O pão representa a vida, a força que residia dentro dele mesmo e que ele compartilhava com os outros.

Negar compartilhar desse pão - que deveria espelhar fraternidade, compreensão, aceitação - transforma-o em um doce veneno que, amassado junto ao trigo, serve para confundir os fracos e segregar os fortes. Um veneno que se mistura e fermenta apenas desilusão e desilução.

O odor que impregna o palco não vem dos lírios dos campos ou das damas da noite - cenário cliché para um funeral. Tampouco é o cheiro da deglutição dos vermes na carnes ainda pulsantes. Não, a Valsa da Morte, executada desmecanicamente por um bailarino solitário dentro de um compartimento igual a tantos outros, é acompanhado por um vômito fétido e escuro. Reação química, no corpo, da mistura do veneno e da vida, encontrados no fazer do pão. Somente assim o joio segrega-se do trigo.

E a única esperança que nos resta, após a sobrevivência e ao tratamento, fecha-se em um ciclo: aquilo que não nos mata apenas serve para nos fortalecer.

Um comentário:

Unknown disse...

Fala grande Rui!!! Tenho lido seu blog, mas nunca comentei e me senti culpado por isso, pois tenho por dever dar forças aos meus amigos, principalmente àqueles que ousam fazer algo que ainda não consegui, por me sentir incapaz ou por não acreditar que conseguirei, talvez medo de me frustrar. Admiro sua coragem de, com esse blog, expor tudo aquilo que sente sem pudor algum e com o poder das palavras escritas, pois não consegui transpor a barreira da escrita, me atenho, ainda, às palavras soltas ao vento, minha fala incessante e crítica.
Abçs do seu amigo Murilo.