quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Nossa Madame Clessy

Vestido de Noiva foi um marco na moderna dramaturgia brasileira. Fato inegável, constante nos melhores e mais respeitados livros de história e de literatura do país. A divisão por planos, a confusão mental, principalmente de Alaíde (a noiva em questão), que morre tragicamente atropelada, reflete um pouco a torrencial e atabalhoada corrente de pensamentos que perpassa nossos neurônios e nossos músculos.

Na montagem feita pelos Satiros, em cartaz até o próximo domingo no Itaú Cultural, em São Paulo, Alaíde me parecia mais dúbia. Ou será que a mim - Bentinho que sou - ela se revelou uma nova Capitu, que não sabe se matou ou não o marido com golpes na cabeça, que foge, a qualquer custo, de seu destino trágico, que é ser traída (ou supostamente traída) e igualmente morta (ou supostamente morta) por sua própria irmã e seu marido?

Mas não foi Alaíde, Pedro ou Lúcia, o que mais surpreendeu nesta revisitação ao universo rodriguiano. O mais chocante foi o que se revelou por trás de Madame Clessy, a velha cortesã cujo diário e o escândalo de um relacionamento com um menino de 17 anos povoaram a fértil imaginação de Alaíde.

Em princípio, a interpretação de Madame Clessy por Norma Bengell me chocou. A imagem mítica da personagem, talvez influenciada pela clássica interpretação de Tonia Carrero no famoso teleteatro da TV Cultura, se desvaneceu. Esqueça o perfume, a sofisticação e até mesmo o sotaque afrancesado. Você não encontrará nada disso na Clessy de Bengell: rústica, quase um diamante que se desgastou pela forte ventania do tempo e pelo abuso da vida. Em nada, nada, ressoa o mito que povoa as nossas cabeças, a não ser os poucos arroubos românticos e pueris que invadem a sua fala, seus suspiros, seu olhar.

A genialidade de Nelson Rodrigues pode ser encontrada no artifício que ele encontra ao espalhar - tal qual Machado de Assis em Dom Casmurro - falsas pistas na longa, sinuosa, acidentada e perigosa trajetória de Vestido de Noiva. Enquanto alguns jornalistas emolduraram a cobertura da morte de Madame Clessy, reforçando o seu mito e jogando mais lenha seca na incendiária imaginação de Alaíde, outros já vão secos na secura da história: uma velha prostituta que morreu apunhalada na face, pelo seu namorado adolescente.

Em que devemos acreditar? Na glamurosa morte de Madame Clessy, cheia de vida, no auge de sua carreira ou na tragédia que a acometeu? A única certeza é a da data da sua morte, em um longínquo ano de 1905. Nem a moda e os costumes de outrora sobreviveram, mas as suas memórias e a sua lenda ainda ecoavam pelos cantos umedecidos e repletos de teias de aranha do castelo.

Pouco saberemos porque não sabemos nem se Clessy foi uma realidade. Ou se não foi um simples nome de guerra dado a uma pobre nordestina migrante, moradora de Bangu, a princípio formosa, que não tinha nada a mais a oferecer que não o seu corpo, mas que, com o tempo, tornou-se banguela, pelancuda e esclerosada. Essa pobre mulher, com nome de batismo Maria das Dor, não mereceu nem mesmo a misericórdia do escrivão do cartório, que não fez a devida concordância e deixou seu nome nos arquivos, eternamente, grafado de forma errada. Não, definitivamente não! Madame Clessy é muito mais elegante! Apesar de etéria e, pout-être, não passar de mera ficção...

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