sexta-feira, 30 de abril de 2010

Anjos e demônios

Estou lendo "A Casa dos Espíritos", da escritora chilena Isabel Allende. Há muitos anos, eu vi o filme no cinema e aquela constelação de estrelas, acredito, deu conta de passar uma história forte, familiar. Como dizem os espanhóis, "me gustan las sagas familiares". E a formação da Familia Trueba, o perfil de Clara del Valle e Estebán Trueba, são absolutamente maravilhosos de devorar. Aos poucos, como uma iguaria que vai derretendo na boca à medida em que a saliva quente da devoção por boas histórias a domina.

O que me impressiona na narrativa de Allende é a capacidade de suceder descrições absolutamente angelicais a linhas que mostram situações que beiram ao escatológico. De repente, saltamos de uma descrição de um banho sendo dado, onde chegamos a sentir os cheiros de alfazema, talco granado e sabonete Phebo e, nas linhas imediatamente seguintes, a atmosfera é tomada pelo mais absoluto odor de enxofre.

Ainda estou no capítulo 3, onde, após 9 anos de um silêncio voluntário, a nossa heroína abre a boca para declarar que se casará com o homem que havia sido noiva de sua irmã, morta acidentalmente envenada em alguns anos anteriores. O casamento é marcado, realizado, e há uma troca do masculino. O cachorro que a seguiu durante a adolescência não suportou a concorrência e morreu demoradamente durante a cerimônia. Vale a pena ler este trecho pensando no porre em que se tornaram as núpcias em nossa sociedade burguesa.

Mas o mais importante é que, no fundo, essas descrições bipolares nada mais são que a explicação de nossa própria natureza. Não somos totalmente anjos e não suportamos o peso integral da demonice. A levez do ser humano consiste em equilibrar esses dois pratos. Sem deixá-los cair. E os personagens allendianos são a expressão perfeita dessa dinâmica.

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